Tchaikovsky e as emoções da alma humana
Quase custa a acreditar que Evgueny Onegin, a mais célebre das óperas de Tchaikovsky, apenas tivesse sido, até agora, apresentada em Portugal uma vez. Em 1993, o ano do bicentenário do Teatro de São Carlos, uma atraente encenação de Andrei Serban com a jovem soprano russa Elena Prokina no papel de Tatiana marcou a estreia da obra em Lisboa, mais de um século depois de ter sido composta. A ausência dos palcos nacionais de uma das mais belas partituras da história da ópera seria razão mais do que suficiente para tornar a recente apresentação em versão de concerto na Gulbenkian um acontecimento. Mas a interpretação da passada quinta-feira (com repetição no sábado) foi também marcante pela participação de alguns cantores notáveis a começar por Elena Prokina, que regressou para interpretar a mesma personagem.Partindo do romance homónimo de Alexander Pushkin, Tchaikovsky quis escrever uma ópera que pusesse em cena verdadeiros seres humanos, com as suas fragilidades e contradições, em vez de "manequins" ou estereótipos. Criou assim uma obra emocionante, onde os sentimentos mais íntimos são partilhados com o ouvinte através da sua expressão mais nobre, sem recorrer ao facilitismo ou ao exibicionismo gratuito. A partitura está cheia de tópicos da música oitocentista que "enchem o ouvido" (danças em voga como a valsa, a mazurca, a polonaise ou a escocesa, romanças de salão, o sabor da música popular russa nos coros dos camponeses), mas tais páginas são escritas com mestria e elegância e encadeadas no todo como a paisagem de um quadro que torna ainda mais viva a profundidade psicológica das personagens. A trama subtil de motivos temáticos no tecido orquestral, a articulação de discursos vocais díspares nas cenas de conjunto ou a habilidade na orquestração são outros factores que contribuem para a eficácia dramatúrgica e para a riqueza do discurso musical.
Ainda que não recorra a rasgos espectaculares de virtuosismo vocal, Evgueny Onegin é uma ópera que necessita de grandes cantores, ou melhor, de cantores-actores de apurada sensibilidade. Nessa perspectiva, Elena Prokina fez de novo uma Tatiana tocante. As diferentes cambiantes da personagem - da jovem tímida e sonhadora à mulher madura, passando pela turbulência de sentimentos despertados pela paixão por Onegin - foram veiculadas através de uma técnica vocal segura, de uma estreita afinidade com o idioma musical de Tchaikovsky e de uma entrega emocional que fez da famosa Cena da Carta um momento intensamente comovente, saudado entusiasticamente pelo público.
O papel de Onegin é mais superficial e menos delineado do que o de Tatiana, o que encontra um paralelo na prestação do barítono Dalibor Jenis, dotado de uma excelente voz mas algo linear no plano interpretativo. Marius Brenciu teve boas intervenções como Lensky mas não dominou completamente todos os desafios da bela ária do 2.º Acto, que ficou um pouco aquém do seu potencial expressivo. Em contrapartida, o baixo Anatoli Kotscherga, com a sua voz imponente, mas ao mesmo tempo flexível, foi marcante na magnífica ária de Príncipe Gremine. Maria Soulis (Olga) soube estabelecer o necessário contraste de carácter com Tatiana e Maria Luísa de Freitas (Filipyevna) e Paula Dória (Larina) conseguiram superar as irregularidades das suas actuações no início do 1.º Acto. Laurence Dale (Triquet) foi sugestivo na figura do velho preceptor francês com o seu canto propositadamente enfático.
O Coro Gulbenkian esteve em grande forma apesar da desconcentração causada pelas suas constantes (e pouco práticas) entradas e saídas de cena. Houve de facto falta de coerência em relação às atitudes em palco, que oscilaram entre a pura e estática prestação de concerto nalgumas cenas e o esboço de interacção teatral noutras, sem se perceber qual era o critério dominante. Mesmo com pormenores pontuais a carecer de aperfeiçoamento, a Orquestra Gulbenkian teve uma boa prestação, mostrando uma sonoridade densa nas cordas e eloquentes intervenções dos sopros, que têm nesta partitura um papel crucial. A direcção de Lawrence Foster foi envolvente, sobretudo pela energia e veemência que imprimiu às danças e às partes mais exuberantes da obra.
Cristina Fernandes