Michael Vick A queda de um herói americano
O futebolista americano foi apanhado numa rede ilegal de combates de cães. Mas até cair a bomba que pode acabar com a carreira de Michael Vick, o desportista era mais um desses casos de sucesso que a América tanto gosta de idolatrar
a Não tem sexo nem rock"n roll, mas não faltam ingredientes dramáticos na história do quarterback do futebol americano Michael Vick, um herói caído em desgraça depois de ter sido acusado de gerir um negócio ilegal e sangrento de lutas de cães a partir da sua quinta da Virginia: há violência, lealdade e traição, vício, racismo, interesses corporativos, poucos escrúpulos e muito dinheiro.Até cair a bomba que pode acabar com a carreira de Michael Vick (a reputação já se foi...), o desportista de 27 anos era mais um desses casos de sucesso que a América tanto gosta de idolatrar; um exemplo de mérito e vontade, uma versão adulterada e moderna do conto tipo Cinderela, em que um negro disprivilegiado vence todos os preconceitos e obstáculos até alcançar o seu sonho e conseguir o êxito inimaginável.
Criado num dos mais problemáticos bairros sociais de Newport News, no estado da Virginia, discriminado e sem oportunidades, Michael Vick estaria por certo condenado a uma vida nas margens da sociedade não fosse o seu extraordinário talento para jogar futebol americano. O desporto, repetiu em centenas de entrevistas, afastou-o da delinquência dos outros miúdos do bairro - conhecido como "Bad Newz", não é mais que um aglomerado de prédios deteriorados, enfiados entre as pontes dos viadutos das auto-estradas e os estaleiros do porto, sem jardins ou árvores ou quaisquer recintos onde jogar à bola.
O seu treinador do liceu reconheceu-lhe as capacidades invulgares e em 1999 negociou-lhe uma bolsa de estudo desportiva para a conceituada universidade Virginia Tech, uma comunidade pacata agora tristemente famosa depois do inexplicável tiroteio no qual morreram mais de 33 pessoas, incluindo o perturbado autor dos disparos.
Logo no seu primeiro jogo, Michael Vick marcou três touch downs no primeiro quarto do jogo. Pouco tempo depois era capa da ESPN Magazine, e no ano seguinte ganhava os prémios ESPY e Archie Griffin para o melhor jogador da liga universitária. Os "estudos" acabariam imediatamente: em 2001, ocupava a primeira posição no sorteio para a National Football League (NFL), um feito extraordinário se se tiver em conta que Vick ocupa a posição de quarterback, tradicionalmente reservada a atletas brancos. Foi escolhido pelos Atlanta Falcons.
Na NFL Vick distinguiu-se pelo seu estilo de jogo, em que se junta um enorme poder de passe (mais até que a precisão) e uma grande mobilidade. Vick é um jogador explosivo, destemido, muito ágil e rápido - um "espectáculo" para os adeptos, que se empolgam com cada uma das suas jogadas. Tem ainda uma outra particularidade: apesar de ser naturalmente dextro, lança sempre com a mão esquerda (são raríssimos os jogadores canhotos na NFL).
Imagem factura
Sem nunca ganhar qualquer título, Vick ascendeu rapidamente à galeria dos jogadores imprescindíveis para qualquer equipa. Em 2004, os Atlanta Falcons assinaram com ele um contrato de 130 milhões de dólares (mais 37 milhões em bónus) válido por dez anos que o tornou o jogador mais bem pago da história da NFL e um dos mais ricos da América. A fortuna acumula ainda com uma série de contratos publicitários: da marca desportiva Nike, às bebidas da Coca-Cola, brinquedos da Hasbro ou videojogos da EA Sports, Vick factura milhões com o uso da sua imagem.
Estes seis anos na grande liga não foram isentos de controvérsias e distracções, umas desportivas, outras nem por isso. Aliás, o atleta já tinha mesmo desperdiçado alguns patrocínios por alegadamente atrair "má imprensa". Houve o caso do gesto obsceno dirigido aos adeptos descontentes com a derrota da equipa; a inexplicável falta a uma audiência no Congresso para promover um programa escolar; a novela da garrafa de água atirada para o lixo no aeroporto de Miami supostamente contendo uma quantidade de marijuana ou ainda o processo judicial (resolvido fora dos tribunais) por não ter advertido uma parceira sexual que sofria de herpes genital.
A desgraça
Mas o seu nome só caiu verdadeiramente em desgraça no passado dia 17 de Julho, quando foi formalmente acusado por um Grande Júri pelo seu envolvimento num terrível negócio ilícito de lutas de cães a partir da sua quinta comprada em 2001 num condado rural da Virginia.
Segundo se lê nas 18 páginas da acusação, o "Bad Newz Kennel", um canil que Michael Vick mantinha na sua propriedade de mais de 60 quilómetros quadrados, destinava-se à criação de perigosos cães de luta, utilizados num circuito ilegal de apostas e combates que movimentava milhares de dólares.
A parte mais horrível da história tem a ver com o destino dos animais quando o seu desempenho não correspondia às expectativas dos criadores: os cães eram enforcados, afogados, electrocutados ou mortos a tiro se não se revelassem suficientemente ferozes ou capazes de vencer em combate.
As autoridades foram alertadas para a existência do canil na sequência de uma investigação de um caso de narcóticos que envolvia um primo de Michael Vick. Descoberto o "esquema", o Ministério Público lançou um outro inquérito, que viria a implicar directamente o futebolista - que de imediato declarou a sua inocência, jurando desconhecer o que se passava no canil da sua quinta, que garantiu raramente frequentar.
"Eu nunca lá estou, nunca lá vou. E agora sou eu que tenho de arcar com as culpas e sofrer as consequências. Para mim é uma lição: as pessoas tentam sempre aproveitar-se", justificou-se. No entanto, depois dos depoimentos dos três co-arguidos no processo - que negociaram estatutos de arrependido com o Ministério Público -, Michael Vick viu-se obrigado a mudar a estratégia de defesa.
Os outros arguidos apresentaram provas de como o futebolista não só sabia tudo o que se passava no "Bad Newz Kennel" como era quem financiava a sua actividade. Os "cúmplices" testemunharam ainda que o desportista estava presente em muitos dos combates, que decorriam ou na sua quinta ou noutros recintos (muitas vezes levava os seus cães a combates organizados noutros estados).
A opinião pública americana, surpreendida com o escândalo, não sabe como digerir todas as informações relativas ao caso. Um autêntico circo montou-se à porta do tribunal da Virginia onde Michael Vick viu confirmada a acusação judicial. Em duas "trincheiras" distintas, agrupavam-se os que aplaudiam e os que apupavam o desportista: grupos de defesa dos direitos dos animais e indignados adeptos de futebol, num dos lados, dirigentes de movimentos cívicos e compreensivos fãs do futebolista, no outro.
O líder da equipa
Um porta-voz da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People) explicava a razão de ser da divisão. "A PETA e a Humane Society agarraram-se a este caso porque o perfil do protagonista lhes dá uma oportunidade para aparecer nas notícias, financiar campanhas, arranjar novos membros. E por isso querem vilipendiar Michael Vick. Mas para muitos afro-americanos ele é uma figura importante. Todos crescemos com a regra não escrita de que os negros não podem ser os capitães de uma equipa, e de repente aqui está alguém que pode e é o líder da equipa".
Apanhados no meio da confusão ficaram os patrões e patrocinadores de Michael Vick. Numa decisão inédita, a comissão disciplinar da NFL "recomendou" ao atleta que não se apresentasse no estágio de pré-temporada prestes a começar. O presidente da sua equipa já declarou que Vick não alinhará enquanto decorrer o seu processo judicial (o início do julgamento foi marcado para dia 26 de Novembro). A Nike mandou recolher os produtos com o nome de Vick dos escaparates, depois da loja oficial da NFL, que gere o merchandising das diferentes equipas, ter retirado as camisolas com o número e nome do atleta.
Pressionado pelos media e "atraiçoado" pelos seus colaboradores, Michael Vick acabou por também negociar um acordo judicial com o Ministério Público. Pela voz do seu advogado, o futebolista anunciou ter decidido "assumir todas as responsabilidades" no caso: no acordo, o atleta admitiu o seu envolvimento na criação dos cães de luta e na organização e financiamento de combates ilegais e reconheceu ainda a sua presença nalguns desses eventos. Em troca, a pena possível em caso de condenação foi reduzida para um período de 12 a 18 meses de prisão.
Para os psicólogos e outros especialistas recrutados pelas televisões e publicações desportivas para comentar o escândalo, o caso revela como a "alta competição" que os atletas experimentam não tem apenas a ver com os resultados no campo. Em jogo estão, muitas vezes, personalidades desestruturadas ou em conflito entre a vida "real" antes da fama e fortuna desportiva e o mundo "surreal" em que se tornou o desporto de mais alto nível. No caso em concreto, os psicólogos notam como a vida de Vick balançava entre os amigos marginais do seu passado - a quem quereria provar que continuava a ser "um deles" - e os treinadores, adeptos e homens de negócio, que o encaravam mais como um modelo do que como um indivíduo.
Muitos atletas antes de Michael Vick tiveram as suas carreiras momentaneamente manchadas por escândalos de foro judicial - o caso de O.J. Simpson é o mais notório, mas também o processo por violação de Kobe Bryant, a pancadaria e tiroteio de Pacman Jones ou escândalo de doping de Barry Bonds. "Esta aura com que vivem os nossos atletas tornou-se inaceitável. Demasiadas vezes, vemos a nossa elite desportiva a passear-se pela vida, usando a sua fama e dinheiro para vergar todas as regras e leis que governam o resto da sociedade. E nas raras ocasiões em que são chamados a prestar contas pelo seu comportamento, invariavelmente aparecem como uns ignorantes que não compreendem o que se passa à sua volta", acusou Mark Starr, da revista Newsweek.