Milhares de processos-crime em risco após decisão do Tribunal Constitucional

Em causa está o facto dos juízes do Palácio Ratton terem declarado inconstitucional duas normas de uma lei que obrigam os operadores de telecomunicações a guardarem durante um ano os metadados das comunicações electrónicas, dados que são por vezes provas essenciais para processos-crime.

Foto
Profissionais da Justiça, incluindo juízes, procuradores e constitucionalistas, apelidam os efeitos do acórdão como “bomba nuclear”, “devastador”, “catastrófico”, “terramoto” e “trágico” Nuno Ferreira Santos

O sucesso de milhares de processos-crime ainda em curso, seja em fase de investigação, de julgamento ou de recurso, pode estar comprometido após um acórdão do Tribunal Constitucional (TC) que há menos de três semanas declarou inconstitucionais duas normas que obrigam os operadores de telecomunicações a guardarem os chamados metadados das comunicações electrónica (por exemplo, o dia, a hora, a duração, o número de destino e as antenas que activou uma determinada chamada telefónica) durante um ano.

A notícia foi dada este sábado pelo Diário de Notícias (DN) que cita um conjunto de profissionais da Justiça, incluindo juízes, procuradores e constitucionalistas, que apelidam os efeitos do acórdão como “bomba nuclear”, “devastador”, “catastrófico”, “terramoto”, “trágico”. Em causa estão o artigo 4.º, 6.º e uma parte do 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, intitulada Conservação de Dados Gerados ou Tratados no Contexto Oferta de Serviços de Comunicações Electrónicas, que resultou da transposição de uma directiva comunitária.

Isto porque, muitas vezes, os metadados são provas essenciais no âmbito de um processo-crime e se forem consideradas inválidas podem fazer ruir todo o caso.

O TC considerou que, ao não se prever que o armazenamento desses dados ocorra num Estado-membro da União Europeia, “põe-se em causa o direito de o visado controlar e auditar o tratamento dos dados a seu respeito” e a “efectividade da garantia constitucional de fiscalização por uma autoridade administrativa independente”. Foi ainda declarada inconstitucional a norma do artigo 9.º da mesma lei na parte em que não prevê que o visado seja notificado de que os seus dados foram acedidos pela investigação criminal, “a partir do momento em que tal comunicação não seja susceptível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiro”.

Por outro lado, o TC entendeu que guardar os dados de tráfego e localização de todas as pessoas, de forma generalizada, “restringe de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa”.

Contactado pelo DN, o gabinete da Ministra da Justiça adiantou que a PJ está neste momento a analisar “do ponto de vista prático e jurídico” as consequências deste acórdão “que se reveste de força obrigatória e geral”. A porta-voz oficial de Catarina Sarmento e Castro, reconhece que este acórdão “é apto a ter um relevante impacto na investigação, detecção e repressão de crimes graves”.

A directiva em causa tinha sido “chumbada” pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em 2014, alegando a desproporcionalidade e invasão da privacidade dos cidadãos que tinham um vasto conjunto de dados das suas comunicações guardados, incluindo o local onde se encontravam, sem serem sequer suspeitos de crimes.

Com base na decisão do TJUE, a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, requereu ao Tribunal Constitucional uma fiscalização da legislação e o entendimento foi a declaração de inconstitucionalidade.”É um terramoto na investigação criminal. Catastrófico. Pode ser a destruição do processo penal durante anos”, assinala o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, ao DN.

O também dirigente do Observatório de Segurança Interna e Terrorismo (OSCOT) diz que este acórdão tem “um resultado prático trágico — é maximalista na protecção dos direitos à privacidade e sigilo das telecomunicações, como se não houvesse um direito fundamental tão importante como o direito à segurança ou a segurança nacional como valor e bem da colectividade. Estão a desarmar o Estado dos instrumentos de combate à criminalidade”.

O jurista adverte o “poder político, Governo e Parlamento, para legislarem com urgência um novo diploma”, mas nota que “mesmo uma nova lei não resolve os casos passados, porque a partir deste acórdão desde casos pendentes a processos já julgados pode ser requerida essa nulidade”.

O procurador-geral adjunto Alípio Ribeiro, que dirigiu a PJ, diz que esta “era uma morte há muito anunciada” porque “pelo menos desde a decisão do TJUE era previsível que a questão da constitucionalidade fosse suscitada”. Interroga-se porque “não houve uma antecipação do que era inevitável, nomeadamente com uma nova lei que acautelasse os princípios constitucionais, talvez que o armazenamento fosse por menos tempo (na maior parte dos países são seis meses e na Alemanha são 10 semanas), limitar o acesso, obrigar a notificar o visado passado dois ou três meses, por exemplo.

O magistrado sublinha que “se isto é uma tragédia ou não, só será possível saber quando forem analisados todos os inquéritos em que estes metadados são prova essencial”. Para Alípio Ribeiro “devia haver já uma resposta política, do Governo ou do Parlamento, a esta situação. “Não se pode ficar neste vazio. É muito perigoso para a investigação criminal e para a segurança do país. São 14 anos de acção penal que podem ir abaixo”.

As manifestações de alarme continuam. “A situação que está criada é gravíssima para a segurança dos cidadãos e para a segurança interna em geral. Uma bomba nuclear sobre a investigação da criminalidade informática, como afirmou um prestigiado magistrado do MP”, qualifica o juiz conselheiro jubilado Mário Mendes, que foi secretário-geral do Sistema de Segurança Interna, citado pelo DN.

No seu entender, “o acórdão, que acompanha a posição assumida pelo TJUE em 2014 e 2015, completamente desactualizada face à realidade actual, imensamente agravada com a guerra da Ucrânia”. Mário Mendes antevê que “as consequências podem ser a arguição da nulidade da prova baseada em metadados, quer em processos pendentes quer futuros, e a quase impossibilidade prática de se investigarem crimes praticados por recurso a meios informáticos”. Tal como Alípio Ribeiro, considera “imperiosa a necessidade de legislar por forma a ultrapassar esta questão”.

Esta “urgência” numa nova legislação foi referida em documentos oficiais, pelo menos, pelo Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa (CFSIRP), num relatório de 2019.

Num comentário crítico à decisão da altura do Tribunal Constitucional que impediu as secretas de acederem aos metadados gerais (apenas permitiu os dados base), o Conselho,presidido por Abílio Morgado, apelou a que se “pensasse seriamente no tema da conservação dos dados”, considerando a jurisprudência do TJUE e o requerimento, na altura já entregue, da Provedoria de Justiça.

Rui Cardoso, procurador da República, assinala que “no caso do cibercrime será mesmo impossível haver inquéritos”. “É pensar em todas as intrusões informáticas que tem havido, ainda há dias o caso das burlas através do MBWAY, e pensar que deixa de ser possível identificar os autores”, assevera o ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, também ouvido pelo DN.

Considera que a decisão “teve por base pressupostos errados, nomeadamente que há outra forma de obter estas informações. Simplesmente não há. Vão ficar por resolver crimes muito graves, porque não se vai poder dar o primeiro passo que era aceder a estes dados. Incluindo aqueles em que só através destes dados era possível estabelecer relações entre as pessoas, como no crime organizado. Vai ser devastador”, prenuncia.

"Não deixa de ser caricato”, completa, “que as operadoras possam guardar a mesma informação de todos os seus clientes durante seis meses para efeitos de facturação e não se possa utilizar para investigar crimes muito graves”.

Sugerir correcção
Ler 9 comentários