"O Crime do Padre Amaro": o livro e o filme

No princípio da década de 1870, as divagações mórbidas que haviam ocupado o espírito do jovem Eça foram substituídas pelo desejo de olhar a realidade, tal como a mais recente moda literária preconizava. Quando chegou a Leiria, muita coisa o chocou, mas nada tanto quanto a hipocrisia. Foi naquela vilória, enquanto marcava passo antes de entrar na carreira consular, que Eça criou uma personagem, Amaro, que o acompanharia até Havana, Newcastle e Bristol. Mas "O Crime do Padre Amaro" ultrapassa em muito os cânones da doutrina. O que nos interessa no livro não é tanto a fotografia de Leiria, mas a beleza da prosa, o desenho das personagens e sobretudo a força do texto, uma característica que lhe advém da raiva sentida por Eça perante o país onde nascera."O Crime do Padre Amaro" possui três versões: a primeira, de 1875 , tem 136 páginas, a segunda, de 1876, mais do dobro, e a terceira, de 1880, 674. Depois da palestra que, em 1871, proferira nas "Conferências do Casino", tinham aparecido os primeiros volumes dos "Rougon-Macquart", de Zola, o que fez com que a crença de Eça na finalidade social da literatura se tivesse reforçado. No prefácio que escreveu para a edição de 1880 (e que deixaria inédito), declarava: "Fora da observação dos factos e da experiência dos fenómenos, o espírito não pode obter nenhuma soma de verdade". Mas Eça jamais se limitou a copiar a realidade. O enredo do livro é simples. Numa cidade de província, um pároco, Amaro, seduz uma rapariga, Amélia, que vive na casa onde se aloja. Destes amores, nasce um filho, que será assassinado. Após o parto, Amélia morre e Amaro deixa Leiria. Se a história é, na essência, idêntica nas três versões, há coisas que variam. Em 1876, o amor de Amaro por Amélia não se apresenta sob os tons poéticos de 1875. Na primeira versão, Amaro quase inspira compaixão; depois, é desprezível. Nas duas primeiras versões, tanto Amaro como Amélia são apresentados como seres arrastados para um final dramático. Na terceira, são antes vistos como indivíduos conscientes do que fazem. Nas primeiras versões, a criança é assassinada, por, num gesto de pavor, Amaro a ter atirado a um ribeiro. Na terceira, o infanticídio, embora cometido indirectamente, é premeditado.Quando tudo faria supôr que o livro causaria um tumulto, sobreveio o silêncio. Em Portugal, ao contrário do que sucedia em Inglaterra ou em França, o povo era analfabeto, a burguesia de esquerda e a aristocracia impotente. Mesmo o alvo central da obra, a Igreja, preferiu o silêncio à denúncia. Os 800 exemplares de "O Crime" não eram suficientes para assustar uma hierarquia, entretida, à época, a lutar contra os enterros civis. Por seu lado, comodamente instalados nos seus nichos, os críticos encartados ficaram sem resposta perante uma obra que julgaram ininteligível. A situação de Eça não era agradável. Em Inglaterra, onde se encontrava, ninguém o podia ler; em Portugal, ninguém o compreendia.Ao escrever "O Crime do Padre Amaro", Eça arriscou-se a incluir uma tese, a condenação do celibato eclesiástico. Ora, os romances militantes são, em geral, medíocres. Mas Eça conseguiu superar brilhantemente o obstáculo. No fim, ficou orgulhoso da produção. Ao contrário de Balzac, que preferia sempre o livro que acabara de escrever, Eça era capaz de apreciar as suas obras com frieza. Entre as mais amadas, figurou sempre "O Crime do Padre Amaro". Muitos anos depois, numa carta a Oliveira Martins, escreveria: "A propósito de romances: 'O Primo Basílio', esse fait-Lisbonne, foi traduzido em inglês, alemão, sueco e holandês, nestes últimos seis meses! Que atroz injustiça para o pobre Padre Amaro!". Tinha razão. A obra pode, sem favor, ser considerada uma das mais sucedidas estreias da ficção europeia oitocentista. Sendo as coisas o que são, poucos se aperceberam do facto. Mas isso não nos deve impedir de afirmar ser Eça um escritor tão bom, ou melhor, do que Dickens, Zola ou Dostoievsky. Um dia, quem sabe, Eça receberá a devida consagração. Por ora, temos de nos contentar com a adaptação, feita para o ecrã, pelo argumentista Vicente Leñero e pelo realizador Carlos Carrera. A transposição de um género artístico para outro é sempre uma aventura, nada garantindo que, na passagem, não se perca o que havia feito, do original, uma experiência inesquecível. Sou capaz de relembrar, em segundos, filmes admiráveis - o "Vertigo", de Hitchcock, o "Deus Sabe Quanto Amei", de Minnelli, o "Rio Grande", de John Ford - nascidos de romances justamente esquecidos. Contudo, para poder citar o exemplo de um bom livro que tivesse dado origem a um bom filme - "O Leopardo", de Lampedusa, adaptado ao cinema por Visconti -, foram precisas horas de reflexão.A constatação de que "O Crime do Padre Amaro" apenas deu origem a um filme mediano não me espantou. Um livro é um livro, um filme é um filme. Só os analfabetos imaginam que aquilo que importa é o enredo. Carlos Carrera aproveitou a trama romanesca, da versão de 1875, de "O Crime do Padre Amaro", sem possuir o génio de Eça. Nada de traumático, a não ser para os guardiões do templo. Pela minha parte, apenas me surpreendeu o facto de a história, em vez de terminar, como no romance, com um parricídio, o faça com um aborto. O que, diga-se, torna o título incongruente.Sob o Estado Novo, "O Crime do Padre Amaro" ficou submerso sob duas obras, "A Cidade e as Serras" e "A Ilustre Casa de Ramires", que o regime, por razões óbvias, decidiu promover. Sucede que ambas se baseiam em textos incompletos, os quais, antes de morrer, Eça preferira guardar na gaveta. Mas foram eles que marcaram a minha geração. Chegou a altura de se inverter a situação. É pela leitura de "O Crime do Padre Amaro" que se deve começar a ler Eça de Queirós.Insert 1A constatação de que "O Crime do Padre Amaro" apenas deu origem a um filme mediano não me espantou. Um livro é um livro, um filme é um filme. Só os analfabetos imaginam que aquilo que importa é o enredo. Carlos Carrera aproveitou a trama romanesca, da versão de 1875, de "O Crime do Padre Amaro", sem possuir o génio de Eça. Nada de traumático, a não ser para os guardiões do templo.Insert 2É pela leitura de "O Crime do Padre Amaro" que se deve começar a ler Eça de Queirós.

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