Somos várias imagens
Depois do proustiano "Le Temps Retrouvé", o chileno Raoul Ruiz regressa com um filme inteiramente rodado em Sintra: "Combate de Amor em Sonho" é um labirinto perceptivo que, diz Ruiz, não poderia ter sido filmado em nenhum outro lugar.
Era de esperar que, mais cedo ou mais tarde, alguém - dividido entre a análise do objecto acabado que recebeu o nome de "Combate de Amor em Sonho" e o conhecimento da forma como foi rodado - perguntasse a Raoul Ruiz: "E os actores, prestaram-se de bom grado a tudo isso?"As filmagens decorreram em Portugal, mais concretamente na Quinta da Regaleira, em Sintra, para onde o realizador chileno arrastou nomes como Christian Vadim, Melvil Poupaud, Lambert Wilson ou Elsa Zylberstein. Quanto ao "cast" português, André Guedes, Diogo Dória, José Meireles, Pedro Hestnes e Rogério Samora trabalharam em papéis centrais, Francisco Nascimento, Rita Durão ou Ricardo Aibéo em participações especiais. Os primeiros, sobretudo, prestaram-se a processos de trabalho no mínimo "sui generis" - ainda que com um bem identificável perfume de "dejá vu". Ruiz chegou com a ideia de realizar um filme "com os elementos habituais de um conto de crianças" e a convicção de o montar através de um jogo de encadeamentos narrativos inspirado nas técnicas combinatórias desenvolvidas por um cabalista cretense - essencialmente o mesmo sistema binário que já usara para escrever vários romances, mas que adaptava pela primeira vez ao cinema. Partindo de uma base de inspiração real (lá chegaremos), o realizador dormia, sonhava, acordava de madrugada, escrevia e durante as rodagens da manhã dava aos actores os textos que deveriam filmar dois dias depois - "Os produtores [neste caso, Paulo Branco] são mais loucos do que se pensa", comentava Ruiz.A atmosfera particular de Sintra. Estava-se em Fevereiro de 2000. Cerca de dois anos antes, o Casal Bister, um pouco mais abaixo na encosta, perdido entre brumas, muros e árvores, servira de cenário às rodagens do desbragadamente místico "A Nona Porta", de Roman Polanski - obra que conseguiu a proeza de levar Johnny Depp a afirmar ser essa a sua primeira e última visita a Portugal. Mais de cem anos antes, a Quinta da Regaleira fora construída - no final do século XIX - a partir de principios esotéricos. "Acho que não poderia ter filmado em nenhum outro lugar. Há nesta cidade uma atmosfera particular. Aqui, em Sintra, há um campo magnético fortíssimo: dormimos mais, sonhamos mais, temos mais vontade de trabalhar... " Entretanto passaram-se cerca de 15 meses. E os minutos iniciais do filme que agora chega às salas portuguesas explicitam, precisamente, todos estes processos. Explique-se: a verdade é que numa daquelas infindáveis conversas que tanto fascinam Lambert Wilson na pessoa de Ruiz - "uma dessas pessoas que temos vontade de tomar como guia espiritual" -, o actor manifestou a preocupação de ninguém vir a perceber a forma como se cruzam as histórias que compõem um filme inicialmente intitulado "O Tesouro dos Piratas", por isso, sugeriu ao realizador que tudo começasse como um antigo filme de actualidades da década de 40 - "uma forma de dar uma chave que depois esquecemos completamente", segundo Wilson.Temos, pois, um grupo de actores que chegam à Quinta da Regaleira. E uma voz "off" que conta como há nove letras que correspondem a nove histórias. A primeira, sobre as angústias de um estudante de teologia da Universidade de Coimbra que no dia do seu vigésimo aniversário descobre que perdeu a fé nos sentidos. A segunda, baseada nas aventuras de um ladrão que descobre um espelho que faz desaparecer tudo o que reflete. A terceira, a narrativa da vida dos diferentes proprietários de um quadro com a faculdade da cura, mas que em troca dos seus serviços se torna motor de uma certa dose de "concupiscência" (leia-se "apetite desregrado da vontade corrompida pelo pecado").Juntem-se dois piratas que atravessam os séculos à procura de um tesouro que esconderam demasiado bem; um bordel de ex-monjas criado pela contingência de não poderem pagar a renda do convento; dois amantes que pensam encontrar-se apenas em sonhos; saiba-se que ela - Lucrécia - é freira, e que ele, numa vida futura, é um jovem que tem cada facto central da sua vida anunciado com um dia de antecedência na Internet. Por fim, cruzem-se as histórias em sequências como A/B, B/C, C/D, etc. O resultado? Uma composição enigmática, que procura a insolência mas que, mais frequentemente, se instala como uma espécie de labirinto perceptivo fundado sobre uma série de (anacrónicas?) extravagâncias.A grande serpente do tempo. Tudo partiu da história real de Ricardo Latcham que no início do século era um simples empregado da Biblioteca Nacional de Santiago do Chile. Contratado por um caçador de tesouros, Latcham acabou por viajar até Guayacan, no norte do país, onde a equipa encontrou uma enorme quantidade de documentos escritos com caracteres hebraicos, gregos, árabes e tuaregues. "Com eles ter-se-ia podido escrever a história, a vida e os milagres da república anarquista dos irmãos da Costa", explicava Ruiz na altura das filmagens. "No entanto, não encontraram valor nesses documentos, não viram o outro tesouro". E é precisamente nessa ideia final - misto de ironia e reflexão filosófica - que Ruiz fundamenta parte substancial do caos em que faz mergulhar os espectadores do seu filme: como se, perante todos os dados, algo escapasse eternamente à capacidade perceptiva de cada um.Dizia Lambert Wilson: "A ideia central é que todos nós vivemos muitas vidas, continuamos vivos, somos como uma reencarnação. Continuamos como uma espécie de imagem reproduzida de uma personalidade antiga. Somos várias imagens, sempre, sempre". Depois, "há uma espécie de serpente no tempo que faz com que, quando os bordos se tocam, possamos estar em contacto com coisas do passado que regressam regularmente na grande serpente do tempo. É um bocado pretensioso, mas acho que só vamos perceber realmente quando virmos o filme, porque ele [Raoul Ruiz] pode contar muitas coisas diferentes com esta mesma história". Obviamente, Wilson não poderia prever, por exemplo, a forma como Ruiz acabaria por criar um subtexto em que frequentemente se insurge um registo de reflexão tautológica, maneirismo que, também ele, sob formas diversas, regressa frequentemente "na grande serpente do tempo". Mas, para responder à pergunta inicial, Lambert Wilson diz que trabalhar com Ruiz "é um acto criativo puro".