É com certeza um musical à portuguesa

A propósito de "Amália", de Filipe La Féria, em estreia domingo, no Politeama, o PÚBLICO procurou perceber que papel pode desempenhar o musical em Portugal. Assistiu a um ensaio e conversou com encenadores e um professor de teatro. E ficou a saber que La Féria não tem por missão criar o musical português.

Em Vila Nova de São Bento, no Alentejo, ouviu-a muitas vezes na telefonia e recorda, sem esforço, uma voz fina "quase de menina". No domingo, parte dessas memórias sobem ao palco do Teatro Politeama sob a forma de um musical a que Filipe La Féria deu o nome do "maior mito português do século XX" - Amália.Contar a história de Amália e, paralelamente, a do Portugal que ela atravessou, é o principal objectivo do encenador, conseguido através de um conjunto de fados cuidadosamente seleccionados, de um texto acompanhado de perto pelo seu biógrafo, Vítor Pavão dos Santos, e da sequência de imagens que Frederico Courado escolheu para dar forma ao cenário, revelando fotografias da fadista e obras de alguns dos mais conceituados pintores portugueses, de Vieira da Silva a Almada Negreiros, passando por Mário Eloy, Malhoa, Amadeo de Souza Cardoso e, sobretudo, por Maluda, a "tradução pictórica da voz de Amália". Na sala, enquanto o elenco testa os microfones, a azáfama é grande. Correm os técnicos de luzes, dão ordens os de som, apressa-se o figurinista. Não falta nada. No Palco, a Amália madura, interpretada pela cantora Alexandra, introduz a história que se vai contar, marcada pela imensa solidão que sempre acompanhou a fadista. Dividido em dois actos, profundamente marcados pelos grandes compositores da sua vida - Frederico Valério (Carlos Quintas) e Alain Oulman (Henrique Feist) - "Amália" não tem uma "preocupação cronológica excessiva", disse ao PÚBLICO Filipe La Féria, que lhe atribui a ideia do musical, já que era ela que habitualmente dizia que a sua vida dava uma peça de teatro. Falando de uma mulher sábia "da dimensão de uma Natália Correia ou de uma Agustina Bessa-Luís", La Féria confessa só se ter apercebido da sua popularidade em Londres, quando a viu comparada a divas como Judy Garland ou Edith Piaf. "A uma mulher como esta não se faz apenas uma homenagem. Este espectáculo é um tributo que designei por musical por ser um termo mais abrangente. Não quis aproximá-lo da revista. Não quis dar-lhe o traço grosso, mais violento e popular da revista. O cenário de grande solenidade que o afasta dos musicais americanos tem a ver com a postura da própria Amália durante a sua grande fase, muito concentrada, erecta e sem gestos. Não podia ser de outra forma."Num alinhamento em que o texto (La Féria) parece servir, apenas, de introdução a cada um dos temas, "Amália" passa por vários episódios da vida da artista e faz com que se cruze com figuras ímpares do fado e da vida cultural portuguesa, de Berta Cardoso a Alfredo Marceneiro, de Ricardo Espírito Santo, de quem diziam ser amante, a António Ferro, o criador da chamada "política do espírito" que conduziu o gosto da sociedade do Estado Novo. A casa da avó, em Lisboa, onde trauteava à varanda ou rezava à Sra. do Carmo, a miséria dos pais, no Fundão, a Amália - nascida "no tempo das cerejas" - que vendia laranjas no cais com a irmã Celeste, cantava nos concursos de Santo Amaro, na cave do Café Luso ou no Retiro da Severa, onde lhe chamavam a "princezinha do fado encantado". Uma história que não esquece a sua passagem pelo teatro - mais precisamente pela opereta - e pelo cinema ("Capas Negras", ao lado de Alberto Ribeiro), a contribuição que Valério e Oulman trouxeram à sua carreira e à sua vida: "Eles foram os grandes homens da Amália. Valério porque fez com que o fado passasse de uma canção musicalmente pobre a uma canção rica. Oulman porque provocou o seu contacto com os grandes poetas, trazendo uma certa erudição aquilo que era uma expressão popular." Mais, ou menos eruditos, os fados de Valério também imortalizaram Amália, fazendo-a subir ao palco do Teatro Apolo entoando "Confesso" ou "Sabe-se lá" em operetas como "Madragoa" e a "Rosa de Alfama". "Portugal nunca teve uma grande tradição de musical. Até aos anos 40, o que havia era uma tradição de opereta, o espectáculo que o público português preferia, mais até do que a revista. Hoje perdeu-se quase todo esse teatro de grande público, fazendo-se um teatro mais experimentalista. Todo o teatro de reportório, que devia ser a função de um Nacional [D. Maria ou S. João], não existe. Muito menos a opereta."Criticando o exclusivo apoio do Estado ao teatro dito independente, La Féria explicou: "O Estado, talvez devido a um certo pretenciosismo cultural a tocar a mediocridade, aposta num pseudo-intelectualismo. O que não significa que eu seja contra o teatro experimental ou independente. Muito pelo contrário. Agora, acho que uma política cultural coerente deve abranger todos os géneros", acrescentando: "politicamente, hoje é um defeito ter público. Não se pode subsidiar só a revista, da mesma forma que não se pode subsidiar só [Bertold] Brecht ou [Luigi] Pirandello". As digressões aos Estados Unidos e a França também estão presentes, com os momentos de consagração na Broadway ou no Olympia, desde o medley folclórico do primeiro ao "Mourrir Pour Toi" do segundo. "A história de Amália é mesmo de musical e de opereta. É feita de canções e é parecida com a de 'Cinderela', já que ela passa de uma vendedora de laranjas a um mito que encheu os coliseus e o Olimpya."O elenco de 60 figuras "não foi difícil de reunir porque há uma grande apetência do talento português para este tipo de espectáculo, tanto na nova como nas anteriores gerações de actores, basta olhar para o Henrique Feist e para o Carlos Quintas. O mesmo se passa com o público que sente saudades do teatro com canções. O que não significa que este musical - que também podia ser uma opereta - seja popularucho. A peça tem vários níveis de leitura e pode ser vista por vários tipos de público."Sublinhando que o musical em Portugal - "feito à portuguesa e não à americana" - tem condições para se desenvolver, Filipe La Féria refere a morte da revista e o "caso criminoso do Parque Mayer": "O musical à portuguesa sempre foi mais a opereta do que a revista. Hoje, a revista não tem condições para sobreviver. Quando uma coisa que é por natureza politicamente incorrecta começa a ser politicamente correcta, morre."Continuando a entregar-se a espectáculos de grande público sem se prender a um só género, La Féria garante que, com ou sem meios financeiros, não tem por "missão criar o teatro musical em Portugal".

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