O mito é um criminoso
Ele foi um Narciso com o ouro de Midas: tudo aquilo em que tocou transformou-se nele próprio. Na biografia de Graham Caveney, William Burroughs irrompe das páginas e ganha a vida que se lhe escapou antes de morrer, quando estava entretido a criar um mito. Os ícones também se abatem, para finalmente respirarem.
Ao colocar "a vida e o legado" como subtítulo da biografia de William S. Burroughs, Graham Caveney só podia ter uma intenção: demonstrar que a vida de Burroughs, se chegou mesmo a existir, era já em si um legado. Quanto à vida do autor de "Naked Lunch", propriamente dita, apenas se iniciou após o último suspiro. Antes de explicar porquê, há no entanto que acrescentar a "The Priest They Called Him" um terceiro nome, Simon Jennings, responsável pelas colagens e restante composição gráfica do livro. É que o investimento de Caveney, para provar a teoria de que a lenda de Burroughs se formou apesar de ele ter existido, e não por ele ter existido, só foi possível graças ao tratamento gráfico de Jennings, que devolveu o trabalho literário à iconografia, transformando a leitura deste livro numa espécie de negação dos factos, e por isso da história. Burroughs foi portanto devolvido a um imaginário refractário às biografias, que é aquele onde as lendas compõem um puzzle de histórias fictícias para depois apresentarem um resultado que se confunde com a verdade. E assim, a mancha gráfica do texto confunde-se numa cartografia composta de pinturas, rabiscos, manuscritos, pichagens, fotos e fotocópias, recortes de jornais e todo um conjunto de documentos tratados como dejectos, reminiscências de uma conspiração que ajudou a construir um mito e que agora urge desmontar, mesmo que os resultados dessa desmontagem nos deixem no mesmo lugar.Autor de outras biografias de Burroughs, como "The Junkie Priest" ou "Gentleman Junkie" (mas também do poeta Allen Ginsberg e do actor Harvey Keitel), Caveney não elabora aqui a sua visão do escritor, antes a sintetiza. "The Priest They Called Him" implica assim também a leitura do trabalho de Jennings, que se torna tão preponderante como o grafismo de David Carson para a revista "Raygun", ou ainda como a experiência de "leitura visual" da portuguesa "Belém".Burroughs começa por ser uma silhueta, transforma-se depois num atirador, de revólver em punho e com o alvo na sua cara, e termina, já no epílogo, fumando um cigarro com o olhar distraído num imprevisível fora de campo. Por trás dele, um cartaz onde a letras garrafais se lê: "A vida é um criminoso". Burroughs começou por se matar a ele próprio, o que lhe serviu de alibi (excelente, diga-se de passagem) para cometer outros crimes. Não é impunemente que em 1951, após matar a sua companheira Joan Vollmer, Burroughs tenha sido libertado sob fiança e depois acusado de "imprudência criminal", estatuto que lhe deu a liberdade. Vollmer queria vender a sua pistola e estava com Burroughs à espera do comprador. Como o futuro dono da arma nunca mais vinha, e andavam ambos a ressacar da heroína, puseram-se a beber. Horas depois, já aborrecido e francamente bêbado, Burroughs disse-lhe que tinha chegado "a hora de Gilherme Tell" e mandou-lhe pôr um copo em cima da cabeça. A água que continha só foi derramada depois de Vollmer cair com uma bala na têmpora. A propósito do seu filme "Dead Man", Jim Jarmusch disse que a personagem interpretada por Johhny Depp "era como uma folha de papel branco na qual toda a gente escreve qualquer coisa". Quanto a Burroughs, admitiu que nunca teria chegado a ser um escritor se não tivesse matado Joan: "Este acontecimento motivou e formulou a minha escrita (...) pôs-me em contacto com o invasor, o espírito medonho ['ugly spirit'], e levou-me ao combate de uma vida, na qual não tive outra chance que não fosse escrever até encontrar uma saída". A morte de Joan Vollmer foi portanto a autora do primeiro parágrafo da sua obra literária. Qual "Dead Man" (expressão também utilizada para um junkie pedrado), Burroughs passava a assinar por baixo um livro que os outros tinham escrito. E os "outros" até podiam estar mortos. Caveney, por seu lado, acrescenta uma história emblemática, quando conota a morte de Vollmer com as pinturas de Burroughs com pistola, em que disparava sobre uma lata de tinta. A tinta que esguinchava para a tela transformava-se na pintura, "como se estivesse a tentar exorcizá-la - um caso de arte que imita a vida". Demasiadas vezes se enuncia a técnica de "cut up" na obra de Burroughs, em que a colagem de textos lhe serve a construção de outros, mas o que é perturbante reside exactamente no corpo de uma obra em que nunca tocou, e que no entanto é irremediavelmente sua. Caveney arrisca mesmo que no limite nem é necessário ler os seus livros para conhecer o escritor. O próprio Burroughs teve consciência disso em 1944, quando esteve envolvido no homicídio de David Kammerer, um amigo seu que se tinha apaixonado por Lucien Carr. Kammerer não podia mais suportar o desinteresse de Carr e ameaçou matá-lo e suicidar-se caso não pudessem estar juntos. Durante a discussão, Carr apunhalou-o no coração e deitou o corpo ao rio Hudson, em Chicago. Quando confessou o crime a Burroughs, este aconselhou-o a arranjar um advogado e alegar que se tinha apenas defendido. Carr acabou por confessar o crime e tanto Burroughs como Jack Kerouac foram acusados de silenciarem o crime. A história passou aos jornais e apesar de Burroughs ainda ter engendrado com Kerouac um texto sobre o caso, "And The Hippos Were Boiled in Their Tanks", acabou por abandoná-lo. Afinal a obra estava feita, e assinada na forma mais possivelmente conspiracionista. Segundo Caveney, para quem a escrita de Burroughs é um acto de sabotagem que entra em colapso quando é articulada, o escritor podia só ter uma única história para contar, "mas foi uma história que se contou a si própria numa multidão de vozes". A marca de Burroughs encontra-se numa cultura que se disseminou pelas massas, onde a tecnologia ocupou igualmente um papel importante. O imaginário virtual do ciberespaço encontra-se pelo menos desde "Naked Lunch" na obra de Burroughs, e foi a própria geração cyberpunk, nomeadamente o autor de "Neuromante", William Gibson, que assumiu a sua influência. Mas a literatura é uma das suas extensões menos evidentes, porque no meio musical foi ao longo das gerações uma figura tutelar, desde o punk, passando pelo hip-hop e por todas as estéticas envolvendo colagem e apropriação de material alheio através de samples.De resto, para além das suas frutuosas colaborações com os Disposable Heroes of Hiphoprisy, no álbum "Spare Ass Annie", ou ainda com Tom Waits, no espectáculo de Robert Wilson "Black Rider", Caveney defende mesmo que os Material (de Bill Laswell) conseguiram estar mais próximos do espírito do romance de "Western Lands", no disco "Seven Souls" em que citaram o texto, do que o próprio autor. "Tudo pertence ao inspirado e dedicado ladrão", disse Burroughs, para quem "nada existe até ser observado". Ou seja, Burroughs roubou e foi roubado. Cúmplice da geração beat, mas não parte dela, colaborando com Brion Gysin, e deslocando-o para a sombra, participando com Cronenberg na adaptação de "Naked Lunch", e contando mais a sua história do que a do livro, Burroughs conseguiu transformar aquilo que o rodeava nele próprio. A isso, Caveney chamou de um pacto entre Narciso e do toque de Midas. Quanto a Burroughs, chamava-lhe "schlapping", uma espécie de rito sexual em que dois seres se fundiam num só.Quando, inspirado nos hieróglifos do Antigo Egipto, se dedicou à pintura, que consistia basicamente em assinar o seu próprio nome, Burroughs terminou um percurso da forma mais paradoxal: tinha-se finalmente libertado do vírus da linguagem, enquanto derrisão da realidade, mas entretanto, no processo de limpeza, tinha acabado com as palavras e já nada podia fazer com elas. Os seus fantasmas, os seus monstros, o clima de conspiração com que preencheu o seu trabalho, retiravam-se finalmente. E com eles o próprio Burroughs. Burroughs, cuja profissão era ser Burroughs, com tudo o que isso implicava, ficava portanto sem ele próprio. Tal como a personagem de "Queer", cujo afastamento das drogas provocava o afastamento de si próprio, Burroughs desapareceu quando se esgotaram os seus miasmas. Afinal, o inferno não eram os outros, mas sim a necessidade dos outros. Talvez por isso, Burroughs fugiu sempre a tudo o que dele pensavam, como um vírus que só sobrevive porque não é localizado: era homossexual mas também homofóbico, era libertário mas não progressista, era imoral mas também podia comportar-se como um Johnson (o estereótipo do americano correcto, que actua não segundo os seus interesses mas segundo uma forma desinteressada de fazer aquilo que é correcto). Os jovens procuravam nele um revolucionário e deparavam com um cavalheiro, de fato e gravata. Quem era afinal William S. Burroughs? O homem que posava ao lado da cantora Debbie Harry e do pintor Basquiat, ou a fotografia por trás de si? O padre Murphy de "Drugstore Cowboy" ou o homem que se retirou para uma casa isolada no Kansas? Tal como o macaco de um jardim zoológico que desenhou as barras da jaula onde sempre viveu, inspirando Nabokov a escrever "Lolita", Caveney propõe no retrato de Burroughs uma figura simultaneamente comprometida e etérea em relação ao seu tempo e aos lugares que ocupou: "Burroughs pode escrever sobre as paisagens da América do pós-Guerra, mas recusa-se a ser inserido nelas. E se o autor de "Soft Machine" foi "responsável pela criação de uma era em que agora vivemos", então há que olhar para a frente e não para o passado, caso se pretenda compreendê-lo.A sua necessidade de purificação espiritual (com que procurava derrotar o seu "ugly spirit"), foi testada junto dos índios da Amazónia (quando experimentou o Yage, uma espécie de "graal" dos junkies), dentro da igreja da cientologia (sujeitando-se à lavagem cerebral proporcionada pela máquina Joburg criada por Ron Hubbard), colaborando com o seu amante Ian Summerville e o artista plástico Brion Gysin na construção da "dream machine", ou ainda em cerimónias sioux. Mas nada disso era em Burroughs contraditório com a sua participação num spot publicitário da Nike. Afinal, o seu contributo para as artes tinha sido sempre circunstancial, raríssimas vezes usando os meios previsíveis. Foi o desinteresse e a ironia que transformaram Burroughs, não numa personagem deste século, mas na própria encarnação do seu tempo. Ao clamar "por um individualismo mas não pela consciência, pela liberdade mas não pelo dever", como sintetizou Caveney, Burroughs doou os seus traços fisionómicos ao rosto da civilização americana.