Militares portugueses apanhados em rede de tráfico de droga, ouro e diamantes

Polícia Judiciária fez buscas nas regiões de Lisboa, Funchal, Bragança, Porto de Mós, Entroncamento, Setúbal, Beja e Faro. Foram emitidos 100 mandados de busca e detidos dez arguidos. Forças Armadas sabiam da situação desde 2019 e a denúncia terá partido da Polícia Judiciária Militar.

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Militares portugueses na República Centro-Africana (fotografia de arquivo) CEMGFA/LUSA

Polícia Judiciária (PJ) levou a cabo esta segunda-feira uma megaoperação, com o nome Miríade, de combate ao tráfico de droga, ouro e diamantes, avançou a TVI e confirmou o PÚBLICO.

Em comunicado, a PJ informou que foram emitidos 100 mandados de busca (95 domiciliárias e cinco não-domiciliárias) e para a detenção de dez arguidos, na sua maioria antigos militares. Entre eles está também um advogado de Cascais.

Três dos detidos ainda são militares e foram, por isso, levados para a prisão militar de Tomar, durante a tarde. Já os restantes ficam no estabelecimento prisional anexo à PJ. Só depois de serem presentes nas próximas 48 horas a um juiz, em Lisboa, se saberá as medidas de coacção a que ficaram sujeitos durante a investigação.

Foram realizadas buscas nas regiões de Lisboa, Funchal, Bragança, Porto de Mós, Entroncamento, Setúbal, Beja e Faro. Um dos alvos das buscas foi o regimento de Comandos, no quartel da Carregueira, em Belas, concelho de Sintra. 

Segundo a PJ, está em investigação uma rede criminosa, com ligações internacionais, que se dedica a obter proveitos ilícitos através de contrabando de diamantes e ouro, tráfico de estupefacientes, contrafacção e passagem de moeda falsa, acessos ilegítimos e burlas informáticas, tendo por objectivo o branqueamento de capitais.

Ao que o PÚBLICO apurou, os suspeitos são militares, comandos e ex-comandos, que não têm patentes altas. Suspeita-se de que terão usado as missões portuguesas, ao abrigo da ONU, nomeadamente na República Centro-Africana (RCA), para levar a cabo a actividade criminosa. Entre os suspeitos está também um actual elemento da GNR e um agente da PSP que participaram nestas missões. O elemento da PSP exerce funções no Comando Metropolitano de Lisboa.

Os militares transportavam droga, ouro e diamantes daquele país em guerra para a Europa, a bordo de aviões militares, cuja carga não é fiscalizada. A investigação apurou que, por exemplo, no que diz respeito aos diamantes em bruto, estes eram transportados por via terrestre para Antuérpia e Bruxelas, na Bélgica, onde eram vendidos a preços milionários. 

Para branquear o dinheiro compravam criptomoedas, moedas virtuais transaccionadas na Internet sem controlo das autoridades financeiras. E recorriam a testas-de-ferro que colocavam as suas contas bancárias à disposição sendo assim incluídos num circuito de ocultação do dinheiro.  Em troca disso, os testas-de-ferro chegavam a receber 50% do valor dos depósitos.

Esta investigação começou em 2020 e é dirigida pela 10.ª secção do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa. O Ministério Público contou esta segunda-feira com o apoio de 320 inspectores e peritos da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ nas buscas. A investigação foi acompanhada pelo juiz Carlos Alexandre. Nas buscas estiveram também elementos da Autoridade Tributária (AT).

Reacção do Governo

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, considerou que o que aconteceu não deveria ter acontecido, mas não põe em causa a imagem das Forças Armadas portuguesas no mundo. “O que digo é que a imagem internacional de Portugal muito beneficia do facto de nós sermos, como gostamos de dizer, um contribuinte líquido para a segurança internacional, e do facto de, em particular nas missões de paz das Nações Unidas, mas também nas missões da NATO e da União Europeia, o papel desempenhado pelos militares portugueses ser unanimemente reconhecido”, afirmou.

E acrescentou: “Quer quando fui ministro da Defesa, quer agora como ministro dos Negócios Estrangeiros, não ouço de nenhum meu interlocutor internacional que fale sobre forças portuguesas destacadas em missões de paz internacionais outra coisa senão o pedido que nós continuemos e reforcemos a nossa presença”.

Também o secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional, Jorge Seguro Sanches, comentou o assunto, dizendo que “as investigações são muito importantes” para a credibilidade das instituições militares. “Logo que houve algumas suspeitas sobre esta situação, os órgãos próprios passaram a fazer essa investigação e este resultado está agora a funcionar”, referindo desconhecer dados mais específicos sobre a operação policial em curso. O governante adiantou que, “neste âmbito, existe uma estrutura que é a Polícia Judiciária Militar que, desde o início, está envolvida, precisamente na investigação destas situações”, acrescentou, a partir da Marinha Grande.

“Aquilo que nós observamos é, com toda a tranquilidade, as instituições a funcionar, a esclarecer aquilo que têm de esclarecer e a actuar, se for caso disso, nesta situação”, considerou. Questionado sobre se esta situação afecta a imagem das Forças Armadas e de Portugal, Jorge Seguro Sanches respondeu: “Não, não afecta. Se houver alguma situação que deva ser esclarecida, ela tem de ser esclarecida. Se não fosse esclarecida é que poderia afectar...”

Denúncia chegou ao Estado-Maior-General das Forças Armadas em 2019

Em comunicado, o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) informou que, em Dezembro de 2019, foi reportado ao comandante da 6.ª Força Nacional Destacada (FND) na República Centro-Africana (RCA), o eventual envolvimento de militares portugueses no tráfico de diamantes. O comandante da FND relatou a situação ao EMGFA, que, por sua vez, entregou a denúncia à Polícia Judiciária Militar (PJM) para investigação.

Refere o mesmo comunicado que a PJM fez a respectiva denúncia ao Ministério Público (MP), que nomeou como entidade responsável pela investigação a Polícia Judiciária civil.

O EMGFA confirma, no seu comunicado, que o que está em causa de momento é a possibilidade de alguns militares que participaram nas FND na RCA terem sido utilizados como correios no tráfego de diamantes, ouro e estupefacientes. Estes produtos foram alegadamente transportados nas aeronaves de regresso das FND a território nacional.

Além da denúncia imediata, o EMGFA diz que mandou reforçar os procedimentos de controlo e verificação à chegada dos militares das FND e respectivas cargas e que, neste momento, os “inquéritos militares e respectivas consequências estão pendentes das investigações em curso, com o cuidado de não interferir neste processo, ainda em segredo de justiça”.

“Uma vez esclarecidas as responsabilidades, as Forças Armadas tomarão as devidas medidas, sendo absolutamente intransigentes com desvios aos valores e ética militar. As Forças Armadas repudiam totalmente estes comportamentos contrários aos valores da instituição militar”, lê-se.

Ministro da Defesa diz que informou a ONU em 2020

O ministro da Defesa revelou, por sua vez, que informou as Nações Unidas (ONU) em 2020 das suspeitas de tráfico que recaíam sobre alguns militares portugueses em missão na República Centro-Africana, garantindo que estes já não se encontravam naquele território.

“Informei [a ONU] de que a denúncia tinha ocorrido, que o assunto tinha sido encaminhado para as nossas autoridades judiciais e que todos os elementos pertinentes tinham sido entregues para investigação judiciária. E também, naturalmente, que os militares sob suspeita já não estavam na RCA e que portanto podiam ter toda a confiança em relação às nossas Forças Armadas como sempre tiveram”, adiantou João Gomes Cravinho, em declarações à agência Lusa.

O governante garantiu ainda que “aqueles cujos nomes tinham sido indicados como suspeitos já não regressaram à RCA em missões posteriores”, vincando que “os militares denunciados já não estavam na RCA na altura da denúncia”.

GNR confirma detido na escola de formação em Portalegre

Já a GNR confirmou que foi detido pela Polícia Judiciária um guarda-provisório em formação, desde Junho de 2021, no 44.º Curso de Formação de Guardas em Portalegre, o qual ingressou na formação proveniente das Forças Armadas.

Portugal está presente na RCA desde o início de 2017, no quadro da Minusca (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana). A 6.ª FND, que o comunicado do EMGFA refere, chegou à RCA em Setembro de 2019 e teve a função de Força de Reacção Rápida. Da 6.ª FND fizeram parte 180 militares, na sua maioria pára-quedistas, pertencendo 177 ao Exército e três à Força Aérea.

Os membros da 6.ª Força Nacional Destacada na República Centro-Africana foram condecorados no dia 27 de Fevereiro de 2020, antes de serem substituídos pela 7.ª FND em Março, numa cerimónia realizada na capital, Bangui, num momento em que o destacamento desta unidade estava a terminar naquele país. A atribuição das medalhas aos 180 capacetes azuis da Força de Reacção Rápida portuguesa ao serviço da missão das Nações Unidas na RCA (Minusca) decorreu numa cerimónia organizada pela ONU, em M'poko, Bangui. Nesta altura estavam na RCA também 14 elementos da Polícia de Segurança Pública.

Segundo um comunicado da Minusca, divulgado na altura, os 180 militares portugueses “estiveram encarregues de proteger civis, recolher informações, responder às crises envolventes, conduzir patrulhas de longo alcance e de operações de controlo de áreas e vigilância”.

Durante os seis meses de operação, a 6.ª FND, ainda de acordo com o mesmo comunicado, “interveio em cenários terrestres e aéreos em vários locais, tendo participado em operações e escoltado altas autoridades”.

Citado pelo mesmo comunicado, o comandante do contingente, o tenente-coronel Victor Sérgio Antunes, disse estar orgulhoso por vários grupos armados terem “entrado em negociações com o Governo da RCA para resolver pacificamente” os seus diferendos.

Ao que o PÚBLICO apurou, esta investigação envolve militares que fizeram parte da 6.ª FND, assim como de anteriores. Cada missão dura seis meses e estarão em causa práticas criminosas que foram passando de uma força para a seguinte que a veio a render.

Segundo dados do EMGFA, na sua página oficial na Internet, actualmente estão empenhados na RCA 180 militares portugueses no âmbito da Minusca e 45 meios. Também na RCA, mas no âmbito da missão de treino da União Europeia (EUTM-RCA), estão actualmente empenhados 25 militares.

A Minusca tem como objectivos “apoiar a comunidade internacional na reforma do sector de segurança do Estado, contribuindo para a segurança e estabilização” da República Centro-Africana, informa ainda o EMGFA.

Desde 2013 que a RCA vive no caos e na violência, depois do derrube do ex-Presidente François Bozizé por vários grupos armados que se juntaram, formando uma aliança com o nome de Séléka, o que suscitou a oposição de outras milícias, agrupadas, por seu turno, sob a designação anti-Balaka.

Este território tem sido palco de confrontos entre estes grupos, que obrigaram quase um quarto dos 4,7 milhões de habitantes da RCA a abandonarem as suas casas. com Lusa

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