LGBTI sob ataque na Polónia: “Se acontece na Europa, pode acontecer em qualquer lado”
A retórica contra a comunidade LGBTI tem contribuído para galvanizar os movimentos nacionalistas na Polónia e uma governação ultraconservadora. Mi Lekler, Mariusz Kurc e Duarte Peralta contam ao P3 como este discurso tem alimentado ódios, fomentado o medo e incitado à violência.
“A minha mãe queria comprar um saco com as cores do arco-íris para a minha irmã, que tem 16 anos, mas acabou por não comprar porque teve medo que ela fosse espancada.” A polaca Mi Lekler, de 27 anos, vive desde 2018 em Portugal, mas acompanha incrédula o que se passa no seu país, onde deixou a família e os amigos.
Nas últimas semanas, a Polónia tem estado no centro das atenções depois de o Tribunal Constitucional do país ter tornado praticamente impossível o aborto no país. Milhares de pessoas têm saído à rua e, se estivesse lá, Mi também estaria nas manifestações. Tal como os seus amigos da comunidade LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo), que nem sempre são bem recebidos nos protestos.
Desde que o partido nacionalista Lei e Justiça (PiS) voltou ao poder, em 2015, a fórmula utilizada tem sido dividir o país e as pessoas LGBTI são agora a “ovelha negra”, “culpadas por todo o mal do país, até pela pandemia”, diz. “As pessoas LGBTI estavam em todas as manifestações: dos professores, dos juízes, etc. Estavam lá com as suas bandeiras. E, na maioria das vezes, era-lhes pedido que escondessem as bandeiras”, conta.
A Polónia é o país da União Europeia com a posição mais baixa no ranking da ILGA-Europe (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo), que anualmente mede como estão a ser respeitados os direitos LGBTI no continente. No último ano, cerca de um terço das localidades do país declararam-se como “zonas livres de ideologia LGBT”, uma medida que, embora não tenha qualquer efeito legal, alimenta e incentiva o discurso contra estas pessoas.
Em Setembro, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, avisou que estas declarações não têm lugar na União Europeia. “Sermos nós próprios não é a nossa ideologia. É a nossa identidade. E ninguém nos pode tirá-la. Zonas livres de LGBTI são zonas sem humanidade”, sublinhou no seu discurso sobre o Estado da União.
A mais de 2500 quilómetros de casa, Mi começou a sentir que não é bem-vinda no seu país. Os amigos falam-lhe de medo e perseguições. A mãe, que em adolescente lutou contra o comunismo, teve medo de comprar o tal saco colorido. “É duro, porque falamos de solidariedade. Mas ainda existe um problema de solidariedade na Polónia”, refere, invocando o movimento que ajudou a derrubar a ditadura comunista.
“Eu não quero parecer uma avó”, avisa Mi, “mas considerem como um aviso aquilo que está a acontecer na Polónia. A Polónia faz parte da União Europeia. Se pode acontecer na União Europeia, então pode acontecer em qualquer lugar.”
O medo alimentado pela Igreja Católica
Mariusz Kurc vive em Varsóvia. É editor da revista Replika, uma publicação direccionada para a comunidade LGBTI. A capital da Polónia é uma cidade “grande e liberal”, descreve numa videochamada com o P3, mas para o activista o cenário actual é “surreal”. Há carrinhas a percorrer várias cidades da Polónia a debitar por um altifalante propaganda anti-LGBTI.
“Desses altifalantes saem coisas bastante homofóbicas, por exemplo, que a homossexualidade está relacionada com a pedofilia”, descreve. “E não são só carrinhas. Às vezes há só grandes colunas em lugares movimentados, como as entradas do metro, por onde eu passo todos os dias.”
Na Polónia, o discurso homofóbico é, até, alimentado pela Igreja. Em 2019, o arcebispo de Cracóvia, Marek Jedraszewski, comparou a homossexualidade ao comunismo, considerando-a uma “praga”: “Nós sabemos também que, felizmente, o nosso país já não está afectado pela praga vermelha, o que não quer dizer que não há uma nova que quer controlar a nossa alma, os nossos corações e a nossa mente. [Essa praga] Não é marxista ou bolchevique, mas nasceu do mesmo espírito, neo-marxista. Não é vermelha, é um arco-íris.”
Mariusz Kurc teme que este discurso torne ainda mais difícil a vida dos jovens polacos LGBTI, sobretudo aqueles que não vivem nas grandes cidades, onde há comunidades e clubes que os podem apoiar. Mesmo assim, a insegurança existe.
Um colega da revista foi preso no início de Agosto, enquanto filmava uma manifestação de apoio à causa LGBTI. No dia a seguir, Mariusz saiu à rua num protesto contra a brutalidade policial. Os amigos aconselharam-no a levar escrito na mão o número de um advogado. “Eu pensei: como é que chegámos a este ponto? Em que vamos a uma manifestação e estamos a preparar-nos para ser presos? Nós fazemos parte da União Europeia.”
Homofobia como arma política
A pandemia veio complicar a luta pelos direitos LGBTI. Com os polacos confinados, a rua perde a voz. Mas, aqui e ali, foram aparecendo bandeiras arco-íris nas janelas. Duarte Peralta, informático de 41 anos, a viver há 15 anos na Polónia, colocou uma na sua janela há cerca de um mês para apoiar a comunidade.
“Preocupa-me a maneira como a política hoje em dia é feita à custa da causa anti-LGBTI”, diz. Duarte considera “assustador” que o Governo tenha conseguido obter o apoio da maioria das pessoas, mesmo com este discurso homofóbico. “Há um Governo que faz estas coisas, então [julga-se que] nas próximas eleições ninguém vai votar para eles continuarem lá. Mas depois não é assim.”
Em Julho, o Presidente ultraconservador Andrzej Duda ganhou as eleições presidenciais por uma margem mínima e Duarte conta que teve uma “minidepressão” pós-eleitoral e chegou a sugerir à mulher que mudassem de país.
Casado com uma polaca, pai de dois filhos com 10 e 12 anos, Duarte inquieta-se com o ambiente em que eles estão a crescer. Também ele já se cruzou com as carrinhas que espalham a mensagem anti-LGBTI. “Tenho medo desta influência da sociedade e da escola.”
Aproxima-se o dia 11 de Novembro, o Dia da Independência da Polónia. Todos os anos há grandes manifestações na rua nesta data, que se foram tornando cada vez mais nacionalistas e dominadas pela extrema-direita. Duarte partilha com o P3 o cartaz que promove a celebração deste ano. No centro da imagem, está um cavaleiro polaco vestido como um hussardo, um membro da elite militar do século XVI. O cavaleiro está inclinado para baixo, segura a espada acima da cabeça e empurra-a para baixo, o joelho no chão apoia o movimento. O golpe é desferido numa estrela partida em bocados. Uma metade é vermelha, a outra é arco-íris.