Referendar a eutanásia? Não concordo. O que nos diz a ética?
Caso se realize um referendo, a legalização ou não da eutanásia, em vez de estar dependente de razões puramente éticas, ficaria refém de motivos contingentes e espúrios das pessoas, como seguirem aquilo que a sua religião particular professa, ou aquilo que os seus líderes advogam, ou aquilo que as suas emoções e preconceitos prescrevem.
Na ética há duas tradições principais: a ética consequencialista e a ética deontológica. Mas o que nos dizem essas tradições éticas sobre a eutanásia voluntária? Será a eutanásia voluntária uma acção moralmente permissível? Será correcto legislar a favor da eutanásia voluntária, tal como pretende agora o nosso Parlamento, sem a realização de um referendo? Ou, pelo contrário, deverá haver a realização de um referendo? Como resposta a tais questões gostaria de deixar claro que a permissibilidade da eutanásia voluntária é bem sustentada tanto na tradição ética consequencialista como na tradição ética deontológica. Por conseguinte, dado que as melhores razões éticas imparciais estão esmagadoramente do lado da legalização da eutanásia, não faz sentido haver referendo; caso contrário, essa decisão ficaria refém de arbitrariedades contingentes que pouco ou nada têm que ver com a ética.
Por um lado, a eutanásia voluntária é sustentada cogentemente na tradição ética deontológica, tal como faz o filósofo Jeff McMahan no seu ensaio “The Morality of Assisting Others to Die”. Para uma tal defesa pode-se apresentar o seguinte raciocínio: tal como é permissível uma pessoa matar-se como meio para beneficiar outros (por exemplo, quando um soldado sacrifica a sua vida ao saltar para cima de uma granada para salvar a vida dos seus companheiros), também é permissível uma pessoa matar-se como meio para se beneficiar a si própria (por exemplo, ao evitar um futuro próximo intrinsecamente mau em termos de qualidade de vida causado por uma doença terminal), desde que isso não seja prejudicial para os outros. Uma vez que em tais casos há uma decisão autónoma e racional, a pessoa que age dessa forma não está a tratar-se como um simples ou “mero meio” (usando a terminologia kantiana) nem está a violar a sua dignidade.
Ora, se isso é correcto, então parece que é igualmente permissível que um terceiro (com os devidos consentimentos) ajude tal pessoa a morrer. Pois, é permissível que um terceiro ajude uma pessoa a fazer aquilo que é permissível a essa própria pessoa. Além disso, dado que beneficiar activamente uma pessoa é melhor do que apenas permitir que ela se beneficie, nos casos em que morte constitui efectivamente um benefício para a pessoa em vez de um dano e em que essa pessoa deseja voluntariamente morrer (sendo um tal desejo informado e reiterado), a eutanásia voluntária activa é uma acção correcta do ponto de vista da tradição ética deontológica.
Por outro lado, a eutanásia voluntária é sustentada solidamente numa ética de tradição consequencialista, tal como faz o filósofo Brad Hooker no seu ensaio “Rule-Utilitarianism and Euthanasia”. A favor disso, um tal raciocínio pode ser sintetizado desta forma: considerando as melhores consequências, uma tal lei da eutanásia voluntária activa tem benefícios em termos de diminuição de sofrimentos desnecessários experienciados por doentes terminais que assim a pretendam e de aumento de autonomia da pessoa, a qual, nessas circunstâncias, se tem liberdade para escolher como viver, parece que também tem liberdade de escolher como morrer.
Como se pode constatar, quer se adopte a ética consequencialista quer se adopte a ética deontológica, a permissividade moral da eutanásia voluntária é bem sustentada. Uma vez que as melhores razões éticas estão esmagadoramente do lado da legalização da eutanásia, não há motivo para se fazer referendo. Isto porque, caso se realize um referendo, a legalização ou não da eutanásia, em vez de estar dependente de razões puramente éticas (como aquelas acima apresentadas), ficaria refém de motivos contingentes e espúrios das pessoas, como seguirem aquilo que a sua religião particular professa, ou aquilo que a autoridade dos seus líderes advogam, ou aquilo que as suas emoções e preconceitos prescrevem, ou aquilo que as suas crenças e “certezas” ditam, etc.
Dessa forma, algo que deveria ser do domínio das melhores razões éticas imparciais deixaria de o ser, originando apenas uma maior polarização social sobre este problema. Ainda assim, do ponto de vista legislativo, recomenda-se prudência na formulação de uma boa lei e consequente fiscalização, de modo a prevenir abusos e rampas deslizantes, fazendo-se um esforço por seguir as melhores razões éticas de forma imparcial.