Há gordofobia nos consultórios médicos — e eu já a vivi

Como podemos confiar em alguém que é suposto ser neutro, zelar pela nossa saúde e que nos diz, a sangue frio, que se não emagrecermos vamos morrer, sem saberem nada sobre nós?

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Charles Deluvio/Unsplash

Um, dois, três, quatro. Começo a contar os passos desde que entro no hospital, passo pela entrada e percorro o corredor de consultórios. É, novamente, a altura da minha consulta trimestral e sinto os olhares de soslaio para mim, que me queimam como brasas. Isto faz com que o coração desacelere, que a respiração se mantenha constante, que me concentre apenas em mim.

Na sala de espera, já sei de cor em que cadeiras me posso sentar, sem ter medo de partir alguma que não aguente com o meu peso e cair. Treinei os meus movimentos naquele caminho várias vezes na minha cabeça, para evitar a vergonha. Se o único lugar vago na sala de espera é no meio de outras pessoas, eu prefiro ficar em pé, não pedir para passar. Não vou passar se a pessoa na ponta da fila de cadeiras não se levantar. É só mais um passo para evitar a humilhação.

Não fico sempre em pânico de cada vez que vou ao médico. Mas a experiência duma mulher gorda de 37 anos fala mais alto. Sofri de gordofobia médica a minha vida toda, fui julgada pela minha aparência, à primeira vista e sem conhecerem o meu historial médico. Disseram-me que tinha de pôr uma banda gástrica ou fazer uma cirurgia bariátrica, sem sequer me medirem as tensões ou pedir análises. Na sua generalidade, os médicos pensam logo que sou uma pessoa doente por ser gorda, mesmo que os procure por outra razão que nada tenha a ver com o meu peso. Fui atendida por profissionais de saúde de várias especialidades e emagrecer foi sempre a solução mágica sugerida, seja para uma labirintite (inflamação no ouvido interno), seja para uma pneumonia ou uma dor de cabeça.

Segundo o Índice de Massa Corporal, estou dentro daquilo que consideram “obesidade mórbida”. Muitas vezes, os médicos guiam-se apenas por isso para ditar o meu estado de saúde geral, o que, para além de ser limitativo, é também muito perigoso. Não se sabe quem está do outro lado, qual vai ser o impacto na sua saúde mental. Como podemos confiar em alguém que é suposto ser neutro, zelar pela nossa saúde e que nos diz, a sangue frio, que se não emagrecermos vamos morrer, sem saberem nada sobre nós?

Em Dezembro de 2012, fui até às urgências por já não conseguir dormir mais do que duas horas seguidas, com dores pelo corpo todo. Ouvi “tem de emagrecer e isso passa”. Insisti que era sério, que não estava a inventar. Chorei de desespero. Emagrecer não podia ser a solução para as minhas dores incapacitantes. Após muitas horas de espera, a médica que me diagnosticou com artrite psoriática é a mesma que me acompanha até hoje, a que visito trimestralmente.

Ao fim de algum tempo, sou chamada para entrar na sala. Entro pela porta, cumprimento a minha médica e puxo a cadeira para me sentar. Por vezes, ela está acompanhada por alunos de medicina e pede que um deles me descreva. Ouço “mulher obesa com artrite psoriática” e ignoro a primeira parte da frase. Não me identifico com o termo “obesa”. A razão para eu não ser saudável não tem a ver com o meu peso, mas com o facto de ter uma doença auto-imune. Ou seja, a saúde não é uma escolha para mim.

Seguem-se os questionários de como me sinto, as avaliações de como a doença progrediu. Depois, tudo aquilo que preciso de fazer para evitar a deterioração física, mental e emocional. Poderia dizer que este é o momento que mais temo, mas estaria a mentir. É neste lugar que me sinto mais segura. Ao contrário de outros médicos que sempre mediram o meu valor pelo meu peso, a minha médica não é gordofóbica. Ou, pelo menos, não na maior parte das vezes. E isso é uma vitória. Por isso, é aqui que eu, finalmente, respiro fundo.

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