Carros, relógios e futebol eram as paixões que definiam um homem, quando eu era adolescente. Mas eu, nessa altura, só ligava a livros, filmes e espectáculos. Fixações culturais que eram coisa de meninas ou de maricas, para a maior parte dos miúdos da minha turma de liceu. Valeram-me, em compensação, a entrada na equipa de fundadores do PÚBLICO e água pela barba em termos de escrita durante dez anos. Depois a Fugas abriu em 2000 e mandaram-me de férias... ou nem tanto. Fui nomeado jornalista residente para o sector de viagens, um paradoxo que aceitei de ânimo leve, sem perceber que um trabalho assim mexe connosco ao ponto de nos mudar radicalmente.
Aproveitei a embalagem das viagens, bem entendido, para ganhar acesso a arte e produtos culturais a uma escala mais global. Ao mesmo tempo, porém, comecei a interessar-me por coisas que antes me passavam ao lado. É aí que entram os carros, os relógios e futebol. E é aí que reside o feitiço das viagens, que encaminham para o diferente, que abrem para o desconhecido, acabando por ser também jornadas de autodescoberta. Em viagem damo-nos muitas vezes conta que somos ou podemos ser outros, sensíveis e entusiasmados com experiências que nos deixam indiferentes à porta de casa.
Eu, por exemplo, nunca fui apreciador de grandes viagens de automóvel, pelo menos até ao Verão de 2004, quando tomei a direcção do Sotavento Algarvio ao volante de um chaço enferrujado. Nada de mais adequado, porém, para explorar uma terra agreste e despovoada, mas de uma poesia e beleza instantâneas. Dispensei mapas, guias e até tabuletas, para improvisar, metendo o carro ao sabor do acaso por línguas de asfalto encarquilhado, caminhos de terra esburacados e até leitos de rio, ao encontro de nada além de bandos de pássaros, rebanhos de cabras e um ou outro burro. Voltei à “civilização”, ou melhor, à redacção, pronto para compor uma “apologia de um Algarve bucólico e rural que, por milagre, o outro Algarve ainda não descobriu”. E voltei também com o novo e nada sensato vício de aproveitar cada viagem mais longa ao volante para inventar e fazer desvios a torto e a direito.
Também nunca achei grande piada a relógios, até Março de 2008, quando a Fugas me enviou a La Chaux-de-Fonds, cidade mais alta da Confederação Helvética (mil metros) e refúgio secular de mestres fabricantes de relógios. Lá se encontra o sensacional Museu Internacional da Relojoaria, uma história ilustrada da relojoaria em 4500 peças que vão de ampulhetas a relógios atómicos, e sobretudo os Autómatos de Jaquet-Droz, três sensacionais proto-robots em funcionamento há 234 anos. Foram eles que me despertaram para a dimensão mágica e onírica de uma família de engenhos onde até então só divisei precisão e funcionalidade. E finalmente o futebol, que nunca me excitou particularmente até a Fugas me levar ao amigável Polónia-Portugal (0-0), na inauguração do Estádio Nacional de Varsóvia, em finais de Fevereiro de 2012. Sozinho, gelado, longe de casa, cercado de adeptos polacos ferrenhos, bastou-me ver a equipa portuguesa subir ao relvado para engatar numa hora e meia de saltos e gritaria. Tudo em nome de uma fé patriótica que, sem a Fugas, provavelmente nunca despertaria tão fundo dentro de mim.
Luís Maio esteve na fundação do PÚBLICO, em 1990, e também da Fugas, em 2000. Antes e depois foi publicando livros, sendo o mais recente Ninguém Sabe Onde Está, uma colecção de crónicas de viagem editada pela Abysmo em 2018. Também promove visitas culturais com a empresa Lisbon Art & Soul.