Na Amazónia, uma enfermeira indígena pede mais ajuda para combater a covid-19

Vanda sente-se sozinha na linha da frente a proteger a comunidade indígena de 700 famílias do surto de covid-19 que devasta a cidade brasileira de Manaus.

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Reuters/BRUNO KELLY

Aos 69 anos, Vicente Piratapuia, da tribo tiratapuia, teve uma febre alta e mal conseguia respirar, mas recusou-se a deixar a sua casa na periferia da maior cidade na floresta tropical da Amazónia. Foram precisas palavras fortes de uma técnica de enfermagem na sua comunidade para o convencer que morreria, se recusasse a sua boleia para as urgências. 

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Vanda examina Vicente Piratapuia, 69 anos, da tribo Piratapuia, na sua casa no Parque das Trios. Vicente desenvolveu uma febre alta e dificuldades respiratórias Bruno Kelly/Retuers

Vanderlecia Ortega dos Santos, ou Vanda, para os seus vizinhos, voluntariou-se para ser a única na linha da frente a proteger a comunidade indígena de 700 famílias do surto de covid-19 que devasta a cidade brasileira de Manaus, o epicentro da crise que ameaça todo o Brasil. 

É uma batalha penosa. Na decrépita povoação onde vivem descendentes de 35 tribos, chamada Parque das Tribos, falta água e luz na maior parte das casas. Ambulâncias recusam-se regularmente a transportar doentes críticos por não haver nenhuma clínica próxima. 

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Vanderlecia usa uma máscara de tecido onde se lê: "Vidas indígenas importam"

Enquanto a pandemia do novo coronavírus se espalha pelo Brasil, pessoas indígenas que vivem nas cidades, e à sua volta, ficam presas num limbo perigoso. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) foca os seus recursos nos habitantes de reservas tribais. A Sesai anunciou dez mortes em terras nativas, mas a organização Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (​Apib) estimou esta semana que a covid-19 terá matado pelo menos 18 brasileiros indígenas, contabilizando as fatalidades em áreas urbanas. O número real de casos nas aldeias remotas do vasto interior do Brasil é difícil de adivinhar. 

Vanderlecia conversa com Sabrina de Sales Benzaquem, uma esteticista que suspeita estar infectada.
Vanderlecia visita a casa de um paciente no Parque das Trios.
A técnica de enfermagem examina Apolonia Antonia Martins Bare, da tribo Bare
Vanderlecia ajusta uma luz na clínica onde trabalha, em Cachoeirinha.
Vanderlecia conduz para o emprego.
Vanderlecia conversa com uma médica na clínica onde trabalha, em Cachoeirinha.
Nos tempos livres, Vanderlecia dedica-se ao combate à covid-19.
Vanda injecta metamizol em Sabrina. ,
Prepara-se para ir trabalhar. ,
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Vanderlecia conversa com Sabrina de Sales Benzaquem, uma esteticista que suspeita estar infectada.

“As nossas pessoas estão a morrer desta doença aqui e não estão a ser reconhecidas como pessoas indígenas pelo Estado e pela Sesai”, disse Vanda, da tribo witoto, que vive próxima da fronteira com a Colômbia. A Sesai disse que os membros das comunidades indígenas deviam usar o serviço de saúde público do Brasil e uma porta-voz do presidente da Câmara de Manaus realçou que a saúde dos indígenas era um assunto federal e não uma responsabilidade da Câmara Municipal.

Manaus, a capital do estado do Amazonas, está a passar pelo mais mortífero surto de covid-19 per capita, no Brasil, com hospitais e cemitérios sobrecarregados. Vanda, 32 anos, nasceu na aldeia de Amaturá, no interior do estado do Amazonas, e mudou-se há dez anos para Manaus, onde se tornou técnica de enfermagem e trabalha numa clínica com pacientes de cancro da pele. 

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Desde que a pandemia começou, Vanda usa o tempo livre para fazer visitas domiciliárias na sua comunidade e detectar potenciais sintomas de covid-19 através de um grupo do WhatsApp que criou. Esta semana tem monitorizado 40 casos suspeitos. Referenciou cinco pessoas em condições graves a serviços de emergência, incluindo uma mulher idosa que teve de ser transportada de carro, devido à falta de ambulâncias.

Vanda dá aos pacientes analgésicos e outros medicamentos básicos, ao mesmo tempo que oferece conselhos para limitar o contágio. Nas visitas domiciliárias usa um avental de protecção, luvas e máscara — por vezes debaixo de um cocar feito de penas de arara, tradicional da tribo witoto. 

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Os protestos chegaram à comunidade antes do vírus, diz. As medidas de distanciamento físico impostas para controlar a propagação do novo vírus afectaram a economia local e destruíram os rendimentos, tanto das mulheres que fazem artesanato ou trabalham nas limpezas das casas de Manaus, como dos homens que trabalham na construção civil. “Como estamos tão desprovidos de assistência institucional, tomei a iniciativa de começar uma campanha nas redes sociais para receber doações de comida e kits de higiene”, disse Vanda.

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As habitações no Parque das Trios, onde Vanderlecia Ortega dos Santos vive com o marido.

Em casa da mãe também montou uma oficina onde mulheres cosem máscaras de tecido para a comunidade, chegando às 30 por dia numa só máquina de costura. 

O sobrinho de Vanderlecia brinca perto de casa no Parque das Trios. Bruno Kelly/Retuers
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Vanderlecia conversa com o marido Sidnei dos Santos à porta de casa. Bruno Kelly/Retuers
Uma boneca pintada com motivos indígenas pela sobrinha de 4 anos de Vanderlecia. Bruno Kelly/Retuers
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Crianças da tribo Witoto brincam numa das ruas do Parque das Trios. Bruno Kelly/Retuers
Brazileia Barrozo dá banho aos seus netos todos da tribo Witoto Bruno Kelly/Retuers
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Vanderlecia trabalha no quarto enquanto os sobrinhos vêem televisão. Bruno Kelly/Retuers
Uma criança indígena brinca no Parque das Trios. Bruno Kelly/Retuers
Vanderlecia e o marido conversam com um amigo da tribo Tukano. Bruno Kelly/Retuers
Vanda, a sua mãe Brazileia e a sua amiga Natalina, da tribo Bare, inspeccionam um pedaço de tecido que será usado para produzir máscaras para a comunidade. Bruno Kelly/Retuers
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O sobrinho de Vanderlecia brinca perto de casa no Parque das Trios. Bruno Kelly/Retuers

Quando o Ministro da Saúde do Brasil visitou Manaus, Vanda e duas amigas receberam-no com um protesto à porta do principal hospital principal, exigindo atenção médica para as pessoas indígenas. Usaram máscaras feitas pela mãe da técnica de enfermagem, que diziam: “Vidas indígenas importam”. 

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Vanderlecia Ortega dos Santos fala com Robson Santos da Silva, chefe da Sesai, durante um protesto em frente ao hospital Delphina Rinaldi Abdel Aziz.

O protesto impulsionou uma reunião com o responsável da Sesai, Robson Santos da Silva, que disse que um hospital de campanha em Manaus, prometido pelo governo federal, teria uma ala para pacientes indígenas infectados pelo novo coronavírus. No entanto, um porta-voz do ministro disse que a construção do hospital de campanha teria de aguardar, enquanto o Governo se foca primeiro em expandir as instalações existentes em Manaus.