Desconfinar “devagarinho”, num Porto já menos fantasmagórico: “Tinha saudades disto”
No primeiro dia do início do desconfinamento, o regresso a um novo normal fez-se com timidez e precauções. Transportes públicos circulam com pouca gente. No comércio, todos antecipam dias difíceis. “Temos de ser realistas: vai ser duro, mas temos de reagir”
Quem viu a Rua de Santa Catarina fantasmagórica das últimas semanas, notaria a instalação de um novo normal na artéria portuense nesta segunda-feira, o primeiro dia do início do desconfinamento de um país fechado em casa há quase dois meses. Não há enchentes nem aglomerações, mas a rua deu finalmente sinais de vida, qual paciente a dar os primeiros passos de uma recuperação.
Paula Pinho faz uma pausa para um cigarro electrónico e olha, enigmática, a Rua de Santa Catarina. Tem 52 anos, trabalha ali desde os 17, e nunca tal cenário lhe passou pela cabeça. O estado de emergência não obrigava a óptica onde trabalha a encerrar e, à porta fechada e por marcação, o serviço foi-se mantendo. Ou, pelo menos, assim se tentou. A reunião matinal desta segunda-feira veio confirmar aquilo que iam percebendo: as receitas caíram 90% no Adão Oculista, loja com selo histórico, e, depois de “tentar tudo”, os patrões iam mesmo seguir para layoff. Os horários serão reduzidos, os salários também.
No olhar de Paula Pinho cabe a tristeza e angústia dessa notícia. Mas também o acumular de outras. Uma das filhas, emigrada na Bélgica, não pode vir a casa desde Dezembro, da neta “pequenita” está apartada há já dois meses. E desde a entrada do país em estado de emergência, a chegada diária à artéria portuense sem gente, instalou-lhe, pouco a pouco, uma sensação de vazio interior. Avistá-la assim, já menos abandonada, é, por isso, uma espécie de luz ao fundo do túnel: “Pelo menos já não parece fantasmagórica. Tinha saudades disto”, pronuncia já sem segurar as lágrimas.
Do outro lado da rua pedonal, uns metros abaixo, Maria José, óculos cor-de-rosa e máscara na cara, reabre a sapataria Naice 47 dias depois de uma despedida contrariada. Em casa, a cozinha era o seu “refúgio” aos dias suspensos, tentativa de não se pôr a matutar neste “vírus em rede” que a todos pode chegar. O medo é, para ela, real: “Medo de a doença chegar, de não vender, da reacção dos clientes, de uma segunda vaga.” Trabalha naquela rua há mais de três décadas e já repensa formas de cativar os clientes. Mas olhar à volta, diz, é uma dor de alma: “Isto não parece Santa Catarina nem a um domingo…”
Apesar da autorização para reabertura do pequeno comércio, muitas lojas permanecem de portadas fechadas. E quem por ali passa, raramente entra em algum espaço. O sol tímido alterna com uma chuva pesada e a parafernália de máscaras parece um desfile de moda: há das cirúrgicas ou bico de pato, há com tecidos simples e com padrões e até umas verdes e vermelhas, em jeito patriótico. Na Rua Formosa, uma das perpendiculares a Santa Catarina, o negócio já se havia ressentido com as obras no túnel do Bolhão, que cortaram o trânsito por ali. Mas a esta crise pandémica nada se assemelha. As palavras são de Manuela Ferreira, lojista na sapataria Pé Formoso: “Ainda não tive nenhum cliente”, conta, por volta das 10h30 da manhã. “Temos de ser realistas: vai ser duro, mas temos de reagir.”
A poucos metros, o cabeleireiro Bairro-chic atende as duas primeiras clientes desde o fecho de portas, afinado com a declaração do estado de emergência. Quando Rui Soares ouviu a última entrevista do primeiro-ministro, António Costa, pegou no telemóvel e mandou mensagens às clientes mais fiéis: iria reabrir na segunda-feira e aceitava marcações. Idalina Teixeira e Deolinda Silva apressaram-se a fazê-la logo no sábado. É que olhar ao espelho com alguma alegria é, por estes dias, fundamental: “Já que temos de estar fechados, pelo menos mantemos a auto-estima.”
Transportes: entre o vazio e o meio-gás
Estação da Trindade, 8 da manhã. Ana Lima faz a limpeza ao minuto e nota “algum movimento” na estação. Nada comparável à vida pré-covid-19, quando para passar a esfregona no chão tinha de pedir licença - como mostram os números da Metro: o uso deste meio de transporte não chegou a um quinto do habitual. Nas máquinas de venda automática, há agora produtos para responder ao novo coronavírus: máscaras entre 1,50 e 3 euros, luvas a 50 cêntimos, gel a 2 euros. Pedro Jerónimo, segurança, fala num dia “pacífico”. A cada composição ali chegada, dá um passo dentro do veículo e verifica se todos usam máscaras, se cumprem a distância de dois metros, se o número de pessoas não ultrapassa os 2/3.
Dali até São Bento, há uma Avenida dos Aliados quase deserta. Silenciosa. Os autocarros indicam a obrigatoriedade de uso de máscara e de validação do título e seguem praticamente sem gente: o 208, para Aldoar, tem cinco pessoas, o 500, para Matosinhos, leva três passageiros. O número de carros, ali e na VCI, apontavam o uso de veículo próprio como uma alternativa talvez a ganhar pontos por estes dias.
O relógio marca as 9h e a Estação de São Bento está vazia. Há dois agentes da PSP, dois seguranças privados, ninguém a fotografar os vistosos tectos e azulejos. Mas quando o comboio oriundo de Penafiel pára, o cenário de formigas é real por uns instantes. Mas as máscaras também. No altifalante, repetem-se as indicações de segurança e os passageiros saem acelerados, sem um minuto para falar com jornalistas: “Estou com pressa para o trabalho...”
Quem não se importa de perder uns minutos é Maria de Fátima. Moradora na Ribeira, está “saturada deste vírus” e das “notícias falsas” sobre a sua cidade, pintando-a como geografia sem regras onde os ajuntamentos são vulgares. “É mentira que no Porto ande muita gente”, protesta em alta voz enquanto faz o pedido no talho na Rua Sá da Bandeira. Numa loja do outro lado da estrada, José Barbosa lava com afinco os vidros da loja Dance Planet, junto ao teatro com o mesmo nome da rua. Trabalha nas limpezas por conta própria e a covid-19 fê-lo perdeu metade dos clientes. Agora, diz, só anseia o regresso a alguma normalidade. “Mas devagarinho.”
Mais a oriente, o cenário não se altera. A Biblioteca Municipal, junto ao jardim de São Lázaro, poderia ter reaberto, segundo as normas do Governo. Mas, como Rui Moreira já havia avisado, as medidas tomadas na cidade a 3 de Março são para manter até 10 de Maio. Em direcção a ocidente, a Cordoaria mantém-se calma, a Livraria Lello não forma filas (nem abriu portas), a Praça Carlos Alberto e Cedofeita são uma sombra dos tempos pré-pandémicos.
A hora de almoço já passou e na Livraria Nunes, na Avenida da Boavista, ainda não se vendeu nada. Mas Manuel Nunes, o proprietário, e Ana Bonifácio, a cunhada, não escondem a alegria de ali estar, sete semanas depois de fecharem as portas com o aviso na porta. “Aguentar” o barco sem mares onde navegar não foi fácil, mas se há coisa que a quarentena atestou ao proprietário da casa foi a incapacidade de meter os papéis para a reforma. Pelo menos para já: “Não estou preparado para ficar em casa”, conta sorridente.
Na livraria aberta por Manuel Nunes há 21 anos só podem entrar dois clientes de cada vez. E sempre com máscara, diz o aviso na entrada. O futuro? “Na idade que tenho, vivo um dia de cada vez”, responde o homem de 65 anos, para logo afirmar que, por ali, o temor não entra. “Medo não, já tenho todas as vacinas.”