Crianças em risco de maus tratos deixaram de receber visitas de rotina dos técnicos

Atendimentos e visitas ao domicílio de comissões de protecção reduzidos ao “estritamente necessário e urgente”. E os professores, que muitas vezes são os olhos do sistema de protecção, não estão com as crianças. “Solicitamos que cada um assuma o seu papel, não ficando indiferente ao que se passa à sua volta, comunicando, se for o caso, à CPCJ”, diz a presidente da comissão nacional.

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Daniel Rocha

Todos os anos, mais de 60 mil crianças e jovens em risco são acompanhadas por 309 comissões de protecção distribuídas por todo o país, na esmagadora maioria das vezes junto da sua família. Para quem se viram agora, no confinamento das suas casas, se, de rompante ou devagarinho, o risco se transformar em perigo? Deixaram de ver até os técnicos que iam passando por lá para verificar se estava tudo bem.

Com o país em estado de emergência, atendendo às medidas preventivas de propagação do novo coronavírus, as diversas comissões de protecção de crianças e jovens (CPCJ) restringiram as reuniões, os atendimentos e as visitas ao domicílio ao “estritamente necessário e urgente”. “Os técnicos das CPCJ, sempre que possível, encontram-se em regime de teletrabalho, tal como o resto da sociedade, continuando a garantir a presença rotativa e assegurando em pleno as suas funções de protecção dos direitos das crianças e dos jovens”, declara, por escrito, a presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, Rosário Farmhouse.

As crianças e jovens em risco que se encontram na alçada dos tribunais de família — por a família não ter autorizado a CPCJ a intervir, por haver incumprimento, por a situação ser demasiado grave, por haver uma relação especial com a pessoa que gera o perigo — também não recebem visitas de rotina. Neste momento, segundo o Conselho Superior de Magistratura, as Equipas Multidisciplinares de Assessoria aos Tribunais só asseguram os “actos presenciais estritamente essenciais para salvaguardar a protecção das crianças e jovens, com especial atenção às situações urgentes que careçam de intervenção imediata”. Todas os outros decorrem de “formas alternativas de trabalho e de contacto (telefone, videochamada, entre outros)”. As equipas dos Centros de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (CAFAP) idem.

Maior risco de casos por identificar

O momento pode ser crítico. “A literatura científica associa períodos de isolamento social a mais altas taxas de violência doméstica e de maus tratos infantis”, alerta Sónia Rodrigues, investigadora externa da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, membro do Grupo de Investigação e Intervenção em Acolhimento e Adopção. “O medo, a ansiedade e o isolamento podem desestabilizar condições psicológicas e situações familiares já por si frágeis. O risco de que muitas situações de violação dos direitos das crianças (maus tratos, abusos sexuais, negligência, exposição a violência doméstica) fiquem por identificar é maior.”

Questionado pelo PÚBLICO, o gabinete da ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, que tutela o sistema de protecção de crianças e jovens, responde que “não está comprometida a vigilância”. “Naturalmente, estão a ser privilegiadas formas de contacto junto das famílias que diminuam risco de contágio, como contacto telefónico e videoconferência.” Escolas e juntas de freguesia “têm sido recursos importantes neste acompanhamento, nomeadamente quando existem dificuldades de contacto. As equipas estão preparadas para intervir presencialmente e de imediato, sempre que é necessário.”

Com o passar dos dias, mais especialistas em protecção se inquietam. Que garantia de privacidade oferece uma chamada de voz ou vídeo? “Uma das estratégias que usamos é entrevistar a criança sozinha porque muitas vezes tem receio do que a família possa fazer”, explica Renata Benavente, perita forense e membro da direcção da Ordem dos Psicólogos. “Podemos ter a criança ao telefone, mas não sabemos se há um adulto atrás.” Com vídeo, também não. E há perigos associados a negligência que as crianças ou jovens podem nem perceber. 

Patrícia Seromenho, provedora da Santa Casa da Misericórdia de Albufeira, não tem ilusões. A sua equipa do CAFAP continua a acompanhar as famílias, fazendo chamadas de voz, videochamadas, jogos, mantendo-se a postos para se deslocar em caso de urgência, mas, “na verdade, em bom rigor”, julga não poder afirmar que oferece a mesma garantia. Bem diferente parece-lhe ser o alcance de uma equipa treinada e experiente que passa pela casa para ver se as crianças dormem o suficiente, tomam banho, estão bem alimentadas, não apresentam sinais de maus tratos.

O recuo da escola e o avanço da vizinhança

Todo o sistema de protecção de crianças e jovens está enfraquecido. A escola é uma espécie de posto avançado – só as forças de segurança sinalizam mais casos. Desde o dia 16 de Março, os professores mantêm-se à distância. E tudo indica que assim continuarão depois das férias da Páscoa.

“Há ali uma vigilância diária”, torna Renata Benavente. Saber isso, por si só, leva as famílias a terem mais cuidado. Agora, nem escolas, nem actividades de tempos livres, nem muitas outras entidades. Faltam os colegas, os amigos, os professores e outros adultos de confiança a quem estas crianças e jovens tendem a recorrer, como salienta Catarina Ribeiro, perita forense e professora da Universidade Católica Portuguesa. “Não há ninguém, que não a família, a quem o miúdo possa pedir ajuda. Penso que é um problema que temos de enfrentar”, torna Renata Benavente.

Rosário Farmhouse conta com a vizinhança. “O risco existe sempre e aumenta quando a sociedade não está suficientemente atenta e, para tal, não é necessário que estejamos a atravessar uma situação tão extraordinária como esta”, declara. “Também estamos conscientes de que numa situação inédita como esta, o risco pode aumentar. Mas estamos atentos, vigilantes e solicitamos que cada um assuma o seu papel, não ficando indiferente ao que se passa à sua volta, comunicando, se for o caso, à CPCJ do local onde a criança está a residir.”

Aquele organismo preparou dois documentos que partilhou no seu site e nas suas contas de Facebook e Instagram. Um com informações e conselhos para as famílias, outros com informações e conselhos para as crianças e jovens.

“Estamos numa situação pouco comum, em que um vírus se está a espalhar de forma muito rápida, contagiando muitas pessoas”, lê-se na nota destinada a crianças e jovens. “É normal ter medo. Nestas circunstâncias, os adultos podem ficar mais irritados ou tristes. Alguns podem até ficar violentos. É muito importante que mantenhas o contacto com os teus amigos e familiares, nas redes sociais ou por telefone. Podes conversar com eles sobre a forma como te sentes em casa ou sobre outros assuntos. Se estiveres a passar por um momento particularmente difícil, tenta permanecer num local da casa em que te sintas mais seguro/a.” Se tudo descambar, há sempre uma escapatória: “Se sentires que precisas de ajuda, liga para o 112, para o SOS-Criança 116 111 (número gratuito) ou envia email para a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens: cnpdpcj.presidencia@cnpdpcj.pt”.

Farmhouse espera que aquela informação faça o seu caminho: “Não estamos sós nesta missão e há várias outras entidades a divulgar informações relacionadas com este tema. Neste momento, todos somos poucos para garantir a passagem da mensagem sobre o desafio da parentalidade em isolamento social. Uma parentalidade que deve ser afectuosa e positiva e também mais criativa.”

Estratégias alternativas

Catarina Ribeiro duvida da eficácia de uma “grande mancha de texto”, num par de folhas, ainda que publicadas no Facebook e no Instagram pela comissão nacional. Em seu entender, é preciso jogar noutro terreno, o das crianças e jovens. A sua aposta faz-se em plataformas digitais, sim, mas com outra linguagem e outros protagonistas — uma mensagem mais curta, uma linguagem mais visual, mais próxima da publicidade, recorrendo a youtubers e outros ditos influencers.

Sofia Neves, professora do Instituto Universitário da Maia e presidente da associação Plano i, aponta para a necessidade de reinventar o papel da escola em tempo de distanciamento social, quarentena e isolamento: “Julgo ser fundamental dotar os/as professores/as de estratégias de identificação e sinalização de casos suspeitos, para que possam articular com as entidades competentes, como as CPCJ. A escola, mesmo que à distância, pode desempenhar este papel e assegurar, na medida do possível, a protecção das crianças, uma vez que continua a estar em contacto com elas.”

Há um grupo de profissionais, multidisciplinar, que, a título informal, está a tentar criar ferramentas que melhor permitam perceber o que se passa dentro de casa destas famílias e dar às crianças e jovens outro modo de pedir ajuda. Comunica pela Net. A pensar numa acção em rede, porque terá de haver, do lado de lá, quem seja capaz de distinguir um caso gravíssimo, que exige retirada imediata, de um caso grave, que exige abertura de um processo, de um caso menos grave, que pode ser trabalhado pelas estruturas de primeira linha. E que comunica à CPCJ local ou ao Ministério Público.

Crianças e jovens também podem usar as estratégias pensadas pela área da Cidadania e a Igualdade de Género. Depois de estabelecer piquetes por distrito e de criar um email de emergência (violência.covid@cig.gov.pt), a secretária de Estado, Rosa Monteiro, lançou um serviço de mensagens curtas (3060), reforçando da linha telefónica para vítimas de violência doméstica (800 202 148).

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