Ministério Público diz que encenação de Tancos beneficiava imagem do Governo

Ex-ministro Azeredo Lopes sabia do plano para ilibar ladrões de armas desde a primeira hora, garantem procuradores, que o acusam dos crimes de denegação de justiça, abuso de poder e favorecimento pessoal.

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Os procuradores imputam um total de quatro crimes ao ex-ministro da Defesa Nacional Nuno Ferreira Santos

A acusação do Ministério Público (MP) ao ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes e restantes 22 implicados no caso de Tancos faz uma leitura política das motivações do governante para não denunciar às autoridades o esquema criminoso destinado a reaver o material de guerra três meses depois do roubo na noite de 27 para 28 de Junho de 2017.

“A recuperação do material subtraído assumia um papel muito importante na imagem interna do Governo, numa altura em que se debatia com as nefastas consequências dos incêndios, que levaram, inclusivamente, à demissão da ministra da Administração Interna”, pode ler-se no despacho do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) que imputa ao antigo responsável pela pasta da Defesa quatro crimes: dois de denegação de justiça e prevaricação, um de abuso de poder e um de favorecimento pessoal.

Da autoria dos procuradores Vítor Magalhães, Cláudia Porto e João Valente, a acusação faz ainda referência aos danos provocados pelo roubo na reputação internacional de Portugal: “A perigosidade e natureza do material militar subtraído gerou grande preocupação de muitas nações, sobretudo as integradas na Comunidade de Países de Língua Portuguesa e na NATO, tendo sido inúmeras as embaixadas a pedir informações ao Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre a localização do armamento e sobre os procedimentos adoptados pelas autoridades portuguesas”.

Escrevem os magistrados do DCIAP que Azeredo Lopes assumiu uma conduta extremamente grave, porque sabia, logo desde 4 de Agosto de 2017, que a Polícia Judiciária Militar (PJM) planeava reaver as armas roubadas cerca de um mês antes a troco da impunidade dos ladrões, nada tendo feito para o impedir. Não denunciou sequer este facto às autoridades. Além disso, depois de tudo acontecer, atribuiu um louvor a um dos homens da PJM envolvidos no plano.

“Violou a fidelidade reclamada pela sua qualidade de ministro da Defesa”, lê-se no despacho de acusação. “Sabia da sua obrigação legal, enquanto ministro, de efectuar denúncias obrigatórias quanto a crimes de que tomasse conhecimento no exercício das suas funções.”

O que não o impediu de “exercer os poderes decorrentes do exercício do seu cargo contra os fins para que lhe foram atribuídos, bem sabendo que estava a beneficiar a proteger autores da prática de crimes”.

O arguido, porém, desmente peremptoriamente esta versão dos factos. Num comunicado enviado ontem às redacções, Azeredo Lopes nega alguma vez ter sido informado de um “alegado encobrimento” no caso de Tancos e considera a acusação “eminentemente política”, afirmando que ela não tem “provas e factos a sustentá-la”.

Na mesma declaração, anuncia que vai solicitar a abertura de instrução do processo, que equivale a uma espécie de pré-julgamento em que a defesa tenta desmontar a tese da acusação. Ainda que considere já ter sido condenado “na praça pública, sem ter tido possibilidade de defesa”, o antigo governante diz confiar na justiça. “E porque nada fiz de ilegal, incorrecto ou sequer censurável – nem sequer politicamente –, estou convicto que serei completamente ilibado de quaisquer responsabilidades neste processo”, acrescenta. Para rematar de seguida: “Chegou agora, finalmente, o tempo da minha defesa.”

"Relação próxima"

O DCIAP revela que o director da PJM, o coronel Luís Vieira, igualmente acusado, “tinha uma relação próxima com Azeredo Lopes”. A 4 de Agosto, este militar “deu conhecimento a Azeredo Lopes de que tinha tido a informação (…) da existência de um indivíduo que tinha subtraído e escondido o material militar” e “disse-lhe ainda que esse indivíduo estava disposto a negociar a entrega do material, exigindo não ser responsabilizado”.

Tratava-se de João Paulino, o ex-fuzileiro que liderou o grupo que assaltou Tancos. No mesmo encontro, Luís Vieira entregou ao ministro três documentos: um memorando sobre o assunto assinado por si, no qual discorria sobre a conexão entre crimes estritamente militares e os restantes crimes, mostrando a sua discordância pela subalternização da Judiciária Militar em comparação com a Judiciária civil, entidade à qual a procuradora-geral da República tinha atribuído a liderança da investigação do roubo; uma síntese cronológica dos acontecimentos, intitulada fita do tempo; e, por fim, uma cópia do despacho do Ministério Público que delegava na Unidade Central de Contra-Terrorismo da Judiciária civil a competência para o apuramento dos factos – documento que se encontrava sujeito a segredo de justiça.

“Azeredo Lopes ficou ciente das contrapartidas exigidas por João Paulino (…). E ainda que o mesmo exigia não ser responsabilizado”, prossegue o despacho de acusação. “Deu, assim, a sua concordância ao plano de Luís Vieira, que passou também a ser seu”: o início de negociações com o ladrão do armamento. O ex-ministro, sublinham os procuradores, “não deu conhecimento desses factos à Procuradoria-Geral da República nem à Polícia Judiciária”, sendo certo que “podia e devia ter-lhes posto fim, através de participações àquelas instituições”. 

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A acusação do MP é conhecida mais de dois anos após o assalto em Tancos PAULO CUNHA/LUSA

Entre os acusados destacam-se altas patentes da GNR, os responsáveis pela investigação criminal na corporação, o coronel Amândio Marques e o coronel Taciano Correia. Igualmente acusado foi o tenente-coronel Luís Sequeira, chefe da Secção de Informações e Investigação Criminal do Comando Territorial de Faro.

O MP tem suspeitas de que a operação de recuperação das armas possa ter sido autorizada nesta corporação a um nível mais alto, mas não conseguiu reunir provas disso.

Porém, dois dos arguidos, Vasco Brazão, da PJM, e Taciano Correia, mencionaram nos seus interrogatórios terem dado informações a dois generais que, neste momento, exercem funções da mais alta responsabilidade na GNR. “Há, de facto, suspeitas de que o adjunto do comandante do Comando Operacional tivesse conhecimento da verdadeira colaboração do Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Loulé” na operação, descreve o MP.

Sobre os militares impende a acusação de associação criminosa, tráfico de armas e falsificação de documentos, bem como de denegação de justiça. Tentaram enganar a Polícia Judiciária civil, desenvolvendo uma investigação ao roubo paralela à que decorria oficialmente. Já no caso de João Paulino e dos homens que gravitavam em torno dele, participando no assalto, a sua acusação inclui, além de associação criminosa e ainda tráfico de droga, também o crime de terrorismo, embora por referência ao furto do material militar.

Para abrir as portas do recinto militar de Tancos João Paulino tentou obter a preciosa colaboração de Paulo Lemos, mais conhecido por Fechaduras. Queria que lhe arranjasse material para franquear os depósitos de armamento militar, e prometeu-lhe 50 mil euros em troca. Mas farto de uma vida ligada ao crime, Fechaduras alertou antecipadamente as autoridades para a possibilidade de vir a ser furtado material militar num quartel português na zona de Leiria. Contou a uma magistrada do Porto ter sido contactado por alguém para participar num assalto deste tipo e acabou por declinar o convite de João Paulino, o que acabou por lhe valer não estar entre os acusados deste processo – muito embora inicialmente tenha arranjado informações úteis para o assalto. Depois dos alertas de Fechaduras, a Judiciária tentou colocar alguns dos suspeitos sob escuta para evitar que o assalto se consumasse. Mas foi impedida de o fazer pelo juiz de instrução criminal Ivo Rosa. 

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