Estudar no Porto entre o “aconchego” e um quarto diferente em cada semestre

Jéssica Roque, 20 anos, ainda não encontrou o “aconchego” que Micaela Pimentel sentiu mal a “colega de casa” lhe abriu a porta. No Porto, o alojamento universitário é a “causa” da Federação Académica — e das principais preocupações dos estudantes.

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Micaela Pimentel, 21 anos, vive em casa de Maria José Cardoso, 94 anos, no Porto. "Fui muito bem acolhida." Manuel Roberto

A colega de casa de Micaela Pimentel tem 94 anos. “É uma senhora cheia de energia”, apresenta-a a estudante açoriana de 21 anos, e não demorou muito até criarem juntas uma rotina a duas velocidades. Micaela sabe que, quando se aproximam as 20 horas, tem de pausar a série policial que estiver a ver (não importa o quão perto estejam de apanhar o assassino) para Maria José Cardoso ver o noticiário. Quando sai à noite até mais tarde, não volta para a cama sem antes ir ao outro quarto dar as boas noites, “chegue a que horas chegar”. Às vezes, passa pelo consultório para ir buscar receitas médicas de Maria José, faz o almoço ao fim-de-semana ou as compras no supermercado perto de casa, na Avenida da Boavista. Não paga renda. Nas férias, quando volta para a ilha Terceira, liga para a “casa no Porto quase todos os dias”. 

É o terceiro ano lectivo em que as duas moram juntas ao abrigo do Programa Aconchego, uma resposta intergeracional da Fundação Social do Porto e da Federação Académica (FAP) para a solidão e os preços e condições actuais do alojamento universitário na cidade. Entre 2004 e 2019, o programa juntou 212 pares de estudantes e moradores do Porto com mais de 60 anos, 17 deles no ano lectivo anterior.

Micaela sabe que não é uma solução escalável para todos os 23 mil estudantes deslocados que a FAP estima haver no Porto, num universo estudantil de 70 mil. São “muito poucos” os colegas que imagina a reagirem como ela se os pais lhes apresentassem esta opção de alojamento. Mas Micaela prospera num “ambiente caseiro”, gosta da estabilidade e da forma como a “tia” se alegra com as notas dos exames. Além do coro da Universidade Lusófona, a estudante de Direito juntou-se ao coro do Tribunal, fundado por Maria José Cardoso há 30 anos. Em Maio, levou o grupo à ilha Terceira. Dessa vez, a “tia” ficou com ela em casa dos pais. 

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Micaela Pimental, estudante açoriana, vive em casa de Maria José Cardoso, no Porto, ao abrigo do Programa Aconchego. Manuel Roberto

Jéssica Roque, 20 anos, ainda não encontrou o “aconchego” que Micaela Pimentel sentiu mal a “colega de casa” lhe abriu a porta. A finalista de Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto teve uma morada diferente em cada semestre da licenciatura. “Agora já me consigo rir”, diz a estudante de Leiria, um riso emoldurado por um encolher de ombros. Algo como: “Ainda assim, acho que poderia ser pior.”

Pior do que pagar 240 euros, sem despesas, por um “quarto pequeno, cheio de beatas no chão”, com uma cozinha que não podia usar por causa “do bolor no fogão e no frigorífico”. Antes deste, tinha deixado a casa partilhada com 20 pessoas que encontrou logo nos primeiros dias da matrícula. “Depois de um semestre, a renda aumentou para 300 euros por pessoa, para um quarto partilhado. Achei que era de mais e saí, sem nada marcado.” Durante os exames ficou em casa de amigos. “Foi horrível porque não me conseguia concentrar. Só pensava em como não tinha casa.”

No início do segundo ano foi estudar para a Roménia. “Foi o melhor semestre”, brinca. Como estudante de Erasmus, pagava 36 euros por um quarto partilhado numa residência. Parecia um “sonho”, mais ainda nos dois meses que passou a procurar a casa que a ia receber de volta. Conseguiu. Estava com uma amiga a pousar as malas quando perguntaram ao senhorio se alguém vivia no outro quarto. “Sim”, respondeu-lhes. “Perguntamos quem era e só é aí é que ele disse: ‘Sou eu’”, conta. “Só havia uma casa de banho. Ouvíamos todas as discussões constantes que tinha com a namorada, que entretanto também se mudou para lá. Comecei à procura de outro sítio mal entrei naquela casa.” 

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Jéssica Roque, 20 anos, teve uma morada diferente em cada semestre da licenciatura em Ciências da Comunicação, que está a terminar. Nelson Garrido

No OLX, em 2019, o preço médio por quarto no Porto é de 280 euros. Apesar do ligeiro aumento do preço (3%) em relação ao ano anterior, até Agosto, a plataforma online registou um aumento tanto dos anúncios publicados como da procura. Em Setembro, existem em média 216 anúncios activos na categoria de “quartos para arrendar” e as zonas com maior procura são Paranhos, Matosinhos, Vila Nova de Gaia e Gondomar.

Já na Uniplaces, até Agosto, as zonas com maior procura, além de Paranhos, foram Cedofeita e Bonfim, com uma renda média de 311 e 312 euros, superior à média do distrito de 299 euros (um aumento de 5,6% em relação ao ano anterior). Segundo a startup portuguesa com alta taxa de estudantes estrangeiros, Rio Tinto, em Gondomar, é a zona mais cara com uma renda média de 338 euros. 

Em 2018, a FAP recebeu pedidos de ajuda de “estudantes a dormirem em carros”. “São situações limite, mas existem”, conta o presidente, João Pedro Videira. O alojamento universitário tornou-se a “causa” da Federação, que não se apraz com as novas 261 camas a preços controlados anunciadas para o Porto, no arranque do ano lectivo. As nove residências da UP e as cinco do Politécnico do Porto estão já maioritariamente ocupadas por estudantes bolseiros. No total, contando com o “compromisso social” de outras instituições, são 1669 camas de oferta pública (embora pelo menos 120 destas estejam em obras) para 23 mil deslocados. “É claramente insuficiente”, diz o presidente da Federação, que aponta o aumento do turismo e a maior atractividade do arrendamento de curta duração como uma das razões do crescimento dos preços da oferta privada. Ainda há quatro anos, diz, “chegávamos a encontrar quartos aqui no Porto a 130 euros com despesas incluídas”. 

Próximo do pólo universitário da Asprela, em Paranhos, abriram este ano a Milestone e a Livensa (580 pessoas), duas residências estudantis consideradas de luxo, com preços que podem chegar aos 700 euros por mês. “Em breve”, outra residência privada, a Collegiate, deverá abrir portas também na Asprela. O público-alvo destas novas opções, que deverão aumentar nos próximos anos lectivos, são os estudantes internacionais. Em Outubro, a FAP espera lançar a primeira pedra do Bairro Académico, uma residência universitária com mil camas a 250 euros, pensada para abrir portas em 2021, em conjunto com a Misericórdia do Porto.

“Nem eu nem os meus pais sabíamos que os preços iam ser os que encontrei. Foi um choque. Fiquei a achar que já não vinha para o Porto”, conta Jéssica Roque. O tecto inicial de 250 euros foi subindo semestre a semestre, até chegar aos 300, com despesas. “Nenhum dos meus amigos vive ainda na primeira casa que encontrou. Mas alguns tiveram sorte. Depende também muito do momento em que se procura.” Lembra-se do quão feliz ficou com um apartamento T2 por 600 euros, para partilhar com uma amiga. Quando telefonou ao senhorio, 20 minutos depois de o anúncio ter sido publicado, o apartamento já não estava disponível. 

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