Foi há 25 anos que perdemos Kurt Cobain, músico feito mito

A 5 de Abril de 1994 morria Kurt Cobain. Soubemo-lo três dias depois e o mito, assente no contexto da morte trágica, começou a nascer nesse preciso momento. Um quarto de século depois, vemo-lo de forma mais transparente, mais justa.

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Kurt Cobain em 1993 Jeff Kravitz/FilmMagic
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Uma guitarra eléctrica Fender Stratocaster que foi destruída por Kurt Cobain em 1992 Reuters/FRED PROUSER

Acontecera três dias antes, mas só o soubemos, naquela noite a chegar a madrugada em Portugal, quando os noticiários de rádios e televisões deram a notícia: “Aos 27 anos, morreu o vocalista dos Nirvana, Kurt Cobain”. Estávamos a 8 de Abril. A arma que utilizou contra si mesmo num anexo da sua casa em Seattle fora disparada a 5 de Abril de 1994. Há 25 anos, desaparecia aquela que foi, provavelmente, a última figura rock de impacto geracional global e transversal, cuja influência transcendeu, no seu tempo, os limites do género — era ouvido por todos —, e que se mantém, hoje, ícone admirado e reverenciado como músico mítico — para o constatar, basta passear em qualquer rua, de qualquer cidade, e reparar na quantidade de t-shirts dos Nirvana em corpos que não eram ainda nascidos em 1994.

Nos anos que passaram desde a sua morte, começou por se acentuar a aura de herói trágico, alguém que sucumbiu às pressões de um sucesso desejado, mas não nos termos em que teve que o viver, a aura de um artista dominado por demónios interiores que a sua aguda sensibilidade não permitiu vencer. Pouco a pouco, à medida que reedições dos discos dos Nirvana, biografias ou documentários dedicados ao seu vocalista foram sendo editados, essa dimensão mais negra deixou de ser exclusiva, revelando-se mais do lado solar, esmiuçando mais sobre o génio criativo e sobre as suas ambições e, nesse caminho, permitindo reencontrar a música dos Nirvana, mais liberta do peso do mito, como aquilo que é antes de tudo o mais: um portento rock'n'roll que atravessa os tempos incólume.

No dia seguinte àquela noite quase madrugada de 8 de Abril, a notícia parecia irreal. Sabíamos dos tumultos que provocara a cobertura mediática da relação com Courtney Love e do nascimento da filha de ambos, Frances Bean, sabíamos do internamento em Roma, em Março, no que foi uma overdose dita acidental de álcool e comprimidos, e eram conhecidos os nunca confessados problemas com heroína. Ainda assim, nada poderia levar-nos a imaginar aquele fim como probabilidade – por nós, entenda-se os milhões que não trabalhavam com os Nirvana ou que lhes eram próximos. Falamos, afinal, do líder da banda que surgira com estrondo meros quatro anos antes, quando Nevermind, o segundo álbum, e o single Smells like teen spirit transformaram o cenário musical da sua era, erguendo ao topo do mundo um rock independente que era ruidoso e gritado como o punk, mas recheado de ganchos pop entre a corrosão eléctrica, e que, nas letras, era marcado por uma negra ironia, qual voz sardónica de uma insatisfação existencial que tantos tocaria.

Falamos, recordemos, do homem que, em Portugal, víramos em Fevereiro de 1994, no histórico concerto do hoje demolido Pavilhão Dramático de Cascais com os Buzzcocks como banda de abertura – e até ouvimos ali, entre as canções de In Utero, o álbum que respondeu à limpidez de Nevermind com turbulência e complexidade, a Smells like teen spirit que estivera vedada do alinhamento dos concertos (passado apaziguado) ou uma Bogey man em viola acústica e acordeão (prenúncio de futuro?). Nós não poderíamos esperar a notícia que chegou. Para quem era próximo de Kurt Cobain, porém, a notícia não chegou como totalmente inesperada.

Danny Goldberg, manager dos Nirvana nos últimos três anos e meio de vida da banda, acaba de editar uma biografia, Serving The Servant: Remembering Kurt Cobain, em que conta a sua experiência com o músico desde que assumiu funções, no preciso momento em que se preparava a edição de Nevermind, ou seja, antes de montanha-russa ser posta em andamento, até à sua morte. Conta da reunião em Março na casa de Kurt Cobain e Courtney Love em que nove pessoas, incluindo banda, amigos e membros da equipa mais próxima, convocados por uma Love assustada com a espiral descendente do marido, tentam convencer Cobain a inscrever-se numa clínica de desintoxicação. Conta que, sentindo-se acossado em sua própria casa, ele rejeita, diz precisar apenas de aconselhamento de um terapeuta, argumenta que, se o seu herói William Burroughs consegue ter uma vida produtiva sendo junkie, porque não o poderá ele conseguir também?

Apesar disso, alguns dias depois Kurt Cobain dá mesmo entrada numa clínica de desintoxicação. Não dura 24 horas na instituição. Abandona-a e regressa a Seattle. Nem a mulher, nem a banda, nem o management sabem do seu paradeiro. Saberão qual o destino final das suas deambulações a 8 de Abril.

Recuando aos tempos passados com os Nirvana, Goldberg contrapõe a ideia do artista torturado que se foi formando, mesmo quando se refere ao período final da sua vida. “Ele não estava deprimido a toda a hora, era criativo, divertido, caloroso, era todas essas coisas — que Kurt terias perante ti dependia do dia, da hora, do período de tempo. O humor era uma parte muito importante (dos Nirvana)”, diz ao Independent. “Não era incessantemente negro, era uma combinação de escuridão e luz”. Da mesma forma, convivia nele o ethos punk da integridade artística e um desejo de sucesso que Cobain intuia não serem exclusivos – o que fazia com que o mesmo Kurt Cobain que impedia a editora de ter qualquer interferência na música, nas letras, na arte gráfica ou nos vídeos, se queixasse ao seu manager que a MTV estava a passar vídeos dos Pearl Jam o triplo do tempo dedicado aos dos Nirvana.

Goldberg refere o desejo manifestado por Cobain em encontrar um rumo paralelo, questionando o manager sobre a possibilidade de gravar a solo, deixando assim em aberto uma porta que nunca saberemos se teria sido escancarada. Especulações. Também elas abundam quando o tema é Kurt Cobain — e acerca da maior de todas, Goldberg é peremptório: esqueçam os teóricos da conspiração que ainda por aí andam, que não, ninguém foi contratado para matar Kurt Cobain. “Ele tinha tentado suicidar-se seis semanas antes, tinha falado e escrito bastante sobre suicídio, estava viciado em drogas, tinha uma arma. Porque é que as pessoas especulam acerca disto?”, questiona o antigo manager.

25 anos depois, o mito ainda é marcado pelo fim trágico, pela morte cedo demais, pela integração nessa linhagem amaldiçoada dos 27 anos de idade a que pertencem também Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones ou Amy Winehouse. Mas, 25 anos depois, há uma marca geracional que permanece, indelével, naqueles que foram contemporâneos da banda e que, em muitos casos, despertaram musicalmente e descobriram musicalmente, através dela. E há um futuro que se propaga. Está em Bleach, em Nevermind, em In Utero, está na compilação Incesticide ou no póstumo Unplugged. Está noutras coisas, como, por exemplo, na postura de oposição à misoginia e à homofobia que pôs Kurt Cobain em confronto com alguns dos seus próprios fãs e que o torna particularmente revelante no contexto actual. Está no facto de Cobain ser, da forma mais resumida possível, rosto e voz de música incrivelmente inspirada e inspiradora (com ou sem mito acoplado).

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