Enfermeiros: parecer da PGR pode ser usado para travar outras greves na Administração Pública

Conselho Consultivo da PGR diz que greve é ilícita pela "surpresa que constituiu a forma como ocorreu". E defende que descontos nos salários dos grevistas devem abranger todo o período do protesto.

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Nuno Ferreira Santos

As conclusões do parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) quanto à “ilicitude” de um fundo de greve constituído mediante o recurso a financiamento colaborativo (crowdfunding) para apoiar os grevistas, como aconteceu com a paralisação “cirúrgica” dos enfermeiros, foram consideradas de “extraordinária importância” pelo primeiro-ministro “não só para o sector da saúde, mas para todos os sectores da Administração Pública”. António Costa tratou, assim, de homologar este parecer na parte que se refere à invulgar forma de financiamento, em despacho publicado esta segunda-feira em Diário da República. E informou a PGR “para os efeitos tidos como convenientes”.

O primeiro-ministro sublinha no despacho que o Conselho Consultivo da PGR concluiu que "a constituição de fundos de greve, quando promovida por entidades não sindicais, constitui uma ingerência não admissível na actividade de gestão da greve".

As conclusões que resultam do parecer “quanto à ilicitude” de um fundo de greve financiado através do recurso a mecanismos de financiamento colaborativo são “particularmente relevantes” tendo em conta “a ausência de regras no nosso ordenamento jurídico” que regulem a concessão de donativos às associações sindicais e a constituição de fundos de greves, argumenta António Costa.

Notando que isto acontece “num contexto de crescente recurso a novas formas de financiamento que implicam, em muitos caso, donativos anónimos”, o primeiro-ministro ratificou o parecer nesta parte, "sem prejuízo do acto de homologação praticado" pela ministra da Saúde na passada sexta-feira. Marta Temido defendeu nesse dia que a segunda greve "cirúrgica" – em curso até ao final deste mês em dez centros hospitalares – deveria ser suspensa, alegando que o parecer, complementar a um primeiro que considerou que o protesto era lícito, é "vinculativo".

"Surpresa" face ao pré-aviso de greve

Os dois sindicatos que convocaram o protesto e os responsáveis pelo Movimento Greve Cirúrgica (que organizou a recolha de donativos) garantem que a greve continua e apelaram já a um alargamento do protesto, concentrado nos blocos operatórios, a todos os serviços hospitalares, reclamando a divulgação dos pareceres. Os dois pareceres foram publicados ao final da noite desta segunda-feira no Diário da República

No parecer complementar, o Conselho Consultivo da PGR concluiu que a primeira paralisação se revelou uma “greve parcial sectorial” e “rotativa” sem que isso fosse perceptível no pré-aviso feito pelos dois sindicatos que a decretaram. Pela “surpresa que constituiu a forma como ocorreu”, face ao que constava no aviso prévio, foi considerada “ilícita”, explica.

Enfermeiros podem ter que pagar indemnizações

As consequências deste entendimento para os enfermeiros que fizeram greve são várias. Além de faltas injustificadas e processos disciplinares, podem ser civilmente responsabilizados (com eventual pagamento de indemnizações), caso tenham resultado danos da paralisação, avisa-se. 

Também os sindicatos que decretaram e geriram a greve podem ser civilmente responsabilizados pelos prejuízos causados, observa o Conselho, que defende ainda que os descontos nos salários não se devem ficar pelo período em que cada enfermeiro fez greve, mas abranger os períodos em que os serviços estiveram paralisados, em resultado da acção “concertada”. Isto porque a “desproporção” entre os prejuízos causados e as perdas salariais dos trabalhadores em greve “não deve ser admitida”. Enfatiza-se, porém, que, na decisão de aplicação de eventuais sanções, pode ser ponderado o eventual desconhecimento pelo trabalhador do carácter ilícito da greve.

Convocada pela Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE) e pelo Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor), a greve “cirúrgica” que decorreu entre 22 de Novembro e 31 de Dezembro foi uma greve parcial sectorial porque as ausências ao trabalho se concentraram num sector específico, os blocos operatórios, lê-se nas conclusões. O protesto inclui-se também “na área das denominadas greves rotativas ou articuladas” porque os elementos que compunham a equipa necessária para a operacionalidade do sector atingido “faltaram alternadamente, inviabilizando assim o funcionamento da equipa”.

Do aviso ao financiamento

Nas greves sectoriais, observa o Conselho Consultivo da PGR, deve constar do aviso prévio a identificação dos sectores que vão ser atingidos e, nas greves rotativas, o modo como se irá processar essa rotatividade. Nada disso aconteceu neste caso. A "ausência de qualquer indicação sobre o tempo e o modo como a greve se vai desenrolar" resulta num" incumprimento do dever de informação que tem como consequência a ilicitude da greve", conclui.

Também a forma de financiamento, com uma recolha de donativos através de uma plataforma de crowdfunding, é posta em causa, ainda que não seja considera ilícita por si só. É questionada porque “não é admissível que os trabalhadores aderentes a uma greve sejam compensados através da utilização de um fundo de greve que não foi constituído nem é gerido pelos sindicatos que decretaram a greve”.

Nesta parte, pode vir ainda a apurar-se que há donativos ilícitos, frisa-se, lembrando que isto pode também provocar a ilicitude da greve. Acresce que, nas operações de crowdfunding, os titulares das plataformas de financiamento são obrigados a preservar a confidencialidade dos dados fornecidos pelos doadores. Assim, se estes não abdicarem do anonimato, não será possível controlar a origem dos donativos, acrescenta o Conselho.

O parecer complementar ao primeiro parecer solicitado ao Conselho Consultivo da PGR foi pedido em 29 de Janeiro pelo Ministério da Saúde. A tutela alegou que na primeira consulta foi questionada a licitude da greve antes desta se realizar, baseando-se apenas no pré-aviso e nas declarações feitas então a órgãos da comunicação social.

Desta vez, o ministério liderado por Marta Temido forneceu elementos sobre a forma e os termos em que a greve se desenrolou. No primeiro parecer, o Conselho Consultivo entendeu que os dados apresentados pelo ministério não permitiam antever os termos em que a greve ia ser executada, o que impedia avançar com um juízo de ilicitude. 

Greve "self service"? Não

O ministério argumentou que, durante 40 dias seguidos, o período da primeira greve, cada enfermeiro aderiu ao protesto "quando quis e pelo tempo que entendeu". E perguntou ao Conselho Consultivo da PGR se não se estaria, assim, perante uma greve "self service" ou "greve trombose", alegando que paralisar os blocos operatórios inviabiliza toda a actividade da área cirúrgica.

Mas o Conselho considerou que não se tratou de uma greve "self service", porque as faltas não resultaram de “uma vontade individual, espontânea e desalinhada de cada trabalhador, mas sim de acção combinada para conseguir um mínimo de faltas e, por isso, de sacrifício patrimonial” dos grevistas.

O parecer complementar é relativo à primeira greve, que provocou o adiamento de mais de 7500 cirurgias, mas a decisão é válida para a segunda fase do protesto. Em causa estão a revisão da grelha salarial, com a carreira a começar nos 1600 euros (actualmente 1200 euros), a antecipação da idade de reforma para os 57 anos de idade e 35 anos de serviço e a contagem de pontos para a progressão na carreira dos enfermeiros que entre 2011 e 2015 tiveram uma revisão salarial. 

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