Julgamento de "El Chapo" abriu uma janela para o império do cartel de Sinaloa

O actor que faz o papel do narcotraficante na série da Neflix foi assistir. O "capo" da droga consegue parar a ponte de Brooklyn e deixa os EUA e o México em polvorosa.

Fotogaleria
"El Chapo" em 2016 Tomas Bravo/REUTERS
Fotogaleria
Joaquin Guzman, à esquerda, numa fotografia encontrada numa rusga num rancho PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA DO MÉXICO/REUTERS
Fotogaleria
Retratado no julgamento, com o advogado de defesa Jeffrey Lichtman, e a mulher, Emma Coronel Aispuro Jane Rosenberg/REUTERS

Dois meses de testemunhos numa sala de tribunal em Brooklyn permitiram ver como funciona o cartel de Sinaloa. Ouviram-se relatos de assassínios macabros, em que foram usadas pistolas com diamantes incrustados, cocaína em latas de pimentos picantes e, no centro de tudo isto, um acusado que escapou duas vezes da prisão.

O julgamento do senhor da droga Joaquín Archivaldo Guzmán Loera, conhecido como "El Chapo", tem mostrado com um detalhe meticuloso como o cartel trafica droga e a faz passar do México para os Estados Unidos.

Droga no valor de muitos milhões de dólares - cocaína, heroína, metanfetaminas e marijuana - atravessa a fronteira através de um sistema de túneis subterrâneos (um deles começa sob uma mesa de bilhar) e compartimentos escondidos em veículos (por exemplo, no meio de garrafões de óleo de cozinha ou em pequenas latas de pimentos picantes), que depois são distribuídos por cidades em todos os EUA, diz a acusação. Estes métodos não seriam travados por nenhum muro na fronteira. 

Guzmán está a ser julgado em Brooklyn, Nova Iorque, e uma das casas que o cartel usava para guardar droga tinha vista para a icónica Ponte de Brooklyn.

Guzmán está detido desde 2016, quando forças de segurança mexicanas o capturaram após uma batalha que deixou vários mortos. No ano anterior, tinha escapado da prisão através de um túnel de um quilómetro e meio escavado sob o chuveiro na sua cela. Uns anos antes, tinha escapado num carrinho de roupa suja.

O processo foi marcado por drama: a amante de Guzmán chorou no banco das testemunhas, a mulher e ele coordenaram, a dada altura, o que vestiram no tribunal, e o homem que geria as redes informáticas do cartel traiu o seu antigo chefe num testemunho público.

O actor veio assistir

Todas as manhãs, a Ponte de Brooklyn fechava ao trânsito para que Guzmán chegasse ao tribunal de uma prisão em Manhattan. O actor que fez o papel de "El Chapo" na série Narcos: México veio observar o processo, cujas histórias eram tão complexas e descaradas que mais pareciam de um filme do que da vida real.

Os procuradores citaram uma “montanha de provas” nas alegações finais após um processo de 12 semanas que incluiu 14 testemunhas cooperantes e um milhão de mensagens interceptadas entre membros do cartel. "El Chapo" é acusado de tráfico de droga, lavagem de dinheiro e conspiração para cometer assassínio. Se for condenado, enfrenta uma pena de prisão perpétua.

A procuradora Andrea Goldbarg começou a sua alegação final relatando um episódio, em que "El Chapo" está à frente de dois homens que estão junto a uma fogueira, “espancados quase até à morte, mas ainda a respirar”, descreveu. Os dois homens enfurecido "El Chapo"​ por terem decidido trabalhar para um cartel rival.   Ele insultou-os mais uma vez, atingiu-os a tiro, e ordenou aos seus homens que atirassem os corpos para a fogueira. 

De seguida descreveu como durante 25 anos, "El Chapo"​ subiu na hierarquia do cartel que é tão lucrativo como brutal. Viajava num carro blindado, criou um exército para combater os seus rivais e inimigos, e fazia escutas aos seus familiares e colaboradores próximos, incluindo a sua mulher e muitas amantes.

Traição do informático

Seria precisamente a paranóia de Guzmán que provocaria a sua queda, disse Goldbarg. O técnico informático do cartel, Christian Rodriguez, que pôs a funcionar o sistema para "El Chapo"​ espiar os seus colaboradores, acabou por dar acesso ao sistema ao FBI.

Quando Guzmán percebeu que Rodriguez estava a cooperar com as autoridades dos EUA, disse Goldbarg, ordenou aos seus homens para encontrar e matar Rodriguez, que testemunhou em tribunal. “Felizmente ninguém sabia o seu apelido e nunca o encontraram.”

Os procuradores passaram gravações de conversas combinando entregas e subornos em que se destacava a voz de voz de Guzmán, descrita como anasalada. 

A defesa procurou desacreditar as testemunhas, insistindo que Guzmán é um bode expiatório e que as testemunhas da acusação “disseram mentiras toda a vida” e estavam a fazê-lo de novo para se salvarem. “Elas atropelariam a própria mãe para condenar esse homem”, disse o advogado de defesa, Jeffrey Lichtman, referindo-se ao seu cliente.

O grande empresário

Antes de ser "El Chapo"​, Guzmán era "El Rapido" – graças às suas capacidades no transporte rápido e não detectado de droga para os EUA, e aos lucros que vinham com esta velocidade. Começou a ganhar outras responsabilidades, incluindo corromper responsáveis em “todos os níveis” do Governo mexicano, segundo os procuradores federais. 

O cartel de Sinaloa cresceu e tornou-se o que os procuradores chamam “a maior e mais prolífica organização de tráfico de droga”. Guzmán e outros líderes do cartel empregavam “sicários” que levavam a cabo centenas de actos violentos, incluindo assassínios, ataques, raptos, e tortura, segundo os procuradores.

Guzmán foi capturado várias vezes; em 1993 na Guatemala e extraditado para uma prisão no México, de onde teria alegadamente expandido ainda mais a sua rede. As outras duas vezes que foi detido acabaram em fugas, até ser capturado, em 2016, num esquema complicado que incluiu o actor Sean Penn e a actriz Kate del Castillo. A sua extradição para os EUA em 2016 foi descrita por um responsável mexicano como “um presente de despedida” ao então Presidente, Barack Obama.

“O público americano ficaria tremendamente informado se tivesse prestado atenção ao julgamento de Guzmán, porque dá uma oportunidade de ver em profundidade como é que estes cartéis operam, a violência e a corrupção que geram, e como geram milhares de milhões de dólares”, disse Mike Vigil, antigo responsável pelas operações internacionais na DEA (Drug Enforcement Administration), que passou 13 anos a trabalhar no México e ao longo da fronteira.

“Ele criou uma organização transnacional que rivaliza com qualquer grande empresa”, comentou Vigil.

AK-47 banhadas a ouro

Tinha um exército privado praticamente à disposição, com AK-47, algumas banhadas a ouro, e até vários lança-rockets. Estendia-se a vários países tanto em termos de entrega de droga como de lavagem de dinheiro, pagava verbas enormes em subornos, tinha especialistas em construção de túneis, essenciais para escapar ou levar a droga. Havia ainda o elemento de ciúme, traição e facadas nas costas – que muitas vezes acabavam em assassínios.

“Há aqui muitos indivíduos que trabalharam com Chapo Guzmán, como fontes de mercadoria ou que trabalharam directamente com ele no cartel de Sinaloa”, disse Vigil. “E todos dizem o mesmo sobre a violência, o tipo de coisas que faziam para lutar contra o Governo, lutar contra os outros cartéis…Os detalhes sobre a violência são espantosos”.

E também davam uma ideia do modo de vida de Guzmán. “Ele começou a cometer muitos erros”; disse Vigil. “E esses erros tinham a ver com mulheres”.

O encontro com o actor Sean Penn e a actriz Kate del Castillo – conseguido pela actriz, que aparentemente tinha atraído a atenção do barão da droga – ajudou as autoridades a chegar até Guzman. Uma das muitas amantes de "El Chapo" testemunhou no processo, e a sua mulher de 29 anos esteve sempre nas audiências.

Um antigo procurador que agora exerce advocacia num escritório privado em Oklahoma, Sanford Coats, disse que o julgamento permitiu ver que havia coisas que as agências sabiam há anos. “Não consigo pensar em ninguém neste nível que tenha sido julgado neste país desde há muito tempo.”

John A. Horn, antigo procurador, agora num escritório privado, comentou que o nível de penetração na vida e operações de Guzmán, incluindo fotos, testemunhas e mensagens de texto privadas – era impressionante. 

“Esperava-se uma cavalgada de testemunhas cooperantes, e isso aconteceu”, disse. “Mas as outras provas, mais tradicionais, as escutas, as chamadas gravadas, a corroboração, o nível da corroboração… ver o nível de actividade quotidiana que conseguiram capturar é notável.”

A prisão de Guzmán não quer dizer que o cartel de Sinaloa tenha sofrido um grande golpe. Na verdade, continua a prosperar na sua ausência, disse Bruce Bagley, professor de estudos internacionais na Universidade de Miami, que estuda cartéis de droga.

Foto
Emma Coronel Aispuro, a mulher de Joaquin Guzman, "El Chapo" Brendan McDermid/REUTERS

Sinaloa tem um modelo de poder descentralizado, o melhor modo de organizar um cartel. “Não se pode cortar-lhe a cabeça”, explicou. “A descentralização torna mais difícil chegar a todos os tentáculos”.

O que é raro neste caso é que o véu sobre como opera o cartel tenha sido levantado. Em muitos casos, tem havido vigilância electrónica eficaz, mas o público nunca vê o seu resultado porque o alvo confessa a sua culpa. E os líderes de cartéis raramente enfrentam julgamentos, que são o meio de conseguir um relato completo e público das operações do cartel. “Ver o quadro completo é uma ocorrência muito rara”, disse Horn.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

Sugerir correcção
Comentar