Governo pondera requisição civil para travar greve dos enfermeiros
Ministério da Saúde quer pedir um novo parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, agora para avaliar a "licitude" do financiamento, através de uma plataforma de crowdfunding, da greve dos enfermeiros.
O Ministério da Saúde está a avaliar juridicamente a hipótese de recorrer à requisição civil para travar os efeitos do segundo período de “greve cirúrgica” dos enfermeiros, que arrancou nesta quinta-feira em sete unidades hospitalares e que está a provocar, de novo, o adiamento de centenas de cirurgias. No primeiro dia de protesto foram adiadas cerca de 200 operações, segundo o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor), uma das duas estruturas que convocaram este protesto.
Mas a requisição civil é apenas uma das possibilidades de reacção jurídica à invulgar forma de luta dos enfermeiros que está a ser avaliada pelo ministério liderado por Marta Temido. Outra passa por pedir um novo parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR), agora para analisar não apenas “o exercício do direito à greve” nestes moldes, mas também “a licitude do financiamento colaborativo” que tem sustentado esta forma de luta, adiantou nesta quinta-feira o gabinete da ministra.
No primeiro período desta greve, no final do ano passado, o Conselho Consultivo da PGR considerou, em parecer, que a convocatória da paralisação era lícita, e, referindo-se então à possibilidade de recorrer à requisição civil, a ministra afastou essa hipótese, classificando-a como uma "opção extrema". Uma opção que habitualmente apenas se usa quando os serviços mínimos não são cumpridos.
Agora, a tutela pretende ir mais longe. Marta Temido já tinha admitido, em entrevista à RTP, depois de as negociações com as estruturas sindicais terem terminado de forma inconclusiva, que ia equacionar o recurso a meios de reacção jurídicos para travar esta segunda greve, sem especificar quais, alegando que estão aqui em causa "questões éticas e deontológicas”, e considerou que poderia estar aqui em causa um “abuso” de direito.
Uma afirmação que o secretário-geral da UGT, Carlos Silva, classificou como "um desabafo irresponsável”. “Era o que faltava! Eu até tenho afinidades com o partido do poder, mas isso não me inibe de combater, de forma incontornável, a posição que a ministra revelou e que é inaceitável do ponto de vista da democracia”, afirmou, lamentando que se questione o direito à greve.
No mesmo sentido, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, disse não perceber como é que o Governo pode agir juridicamente contra a greve sem fazer alterações na lei. Esta não é uma "greve selvagem", estão a ser cumpridos serviços mínimos, por isso não é possível decretar uma requisição civil, enfatizou.
"Estão a tentar diabolizar a greve", lamentou Carlos Ramalho, presidente do Sindepor, lembrado que a ministra tinha dito que "a requisição civil apenas é possível quando os serviços mínimos não estão garantidos".
Mas o especialista em Direito Constitucional, Jorge Reis Novais, defende que a paralisação pode ser considerada “ilícita”, nos termos em que foi decretada, e lembra que, nessa eventualidade, os trabalhadores incorrem em "infracções disciplinares e faltas injustificadas".
“Esta é uma greve self service, com uma duração enorme, e que foi convocada de uma forma generalizada” para todos os enfermeiros, mas que acabou por se circunscrever apenas aos que trabalham nos blocos operatórios, justifica.
Cirurgias oncológicas adiadas
Reis Novais defende ainda que a tutela deve recorrer da decisão do tribunal arbitral sobre os serviços mínimos negociados com os sindicatos. “Eu não queria acreditar que algumas cirurgias oncológicas estavam fora dos serviços mínimos", diz. De facto, os serviços mínimos apenas abrangem as cirurgias oncológicas consideradas prioritárias.
Foi o coordenador do Programa Nacional para Doenças Oncológicas, Nuno Miranda, que chamou a atenção para esta questão, alertando que o adiamento de cirurgias oncológicas pode comprometer o tratamento dos doentes. "Tenho muita dificuldade em perceber que se faça greve a cirurgias oncológicas, porque se a quimioterapia faz parte dos serviços mínimos e não se atrasam a quimioterapia e a radioterapia, acho que a cirurgia, até pela importância que tem na oncologia como primeira arma e arma mais eficaz na maioria dos casos, devia ser abrangida também pelos serviços mínimos", disse à Lusa.
Tanto a primeira como a segunda “greve cirúrgica” são suportadas com dinheiro recolhido de uma forma pouco convencional – uma plataforma de crowdfunding – que serve para pagar aos enfermeiros que faltam ao trabalho nos blocos operatórios dos centros hospitalares afectados. Os profissionais que faltam recebem 42 euros por dia.
O impacto do primeiro período de paralisação foi evidente: foram adiadas cerca de 7500 operações. Destas, 45% foram entretanto realizadas, e outras 45% estão programadas até Março, tendo os custos sido estimados em cerca de 12 milhões de euros.
Esta nova greve estende-se até ao final de Fevereiro e foi convocada pelo Sindepor e pela Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE). Abrange sete instituições: os centros hospitalares São João e o do Porto, o de Entre Douro e Vouga e o de Gaia/Espinho, o de Tondela/Viseu, e os hospitais de Braga e o Garcia de Orta (Almada). Mas, a partir do próximo dia 8, vai ser alargada a mais três centros hospitalares: o de Coimbra, o de Lisboa Norte e o de Setúbal.
A presidente da ASPE, Lúcia Leite, adiantou entretanto ao Expresso que está a ser ponderada a possibilidade de parar todos os dias até à véspera das eleições legislativas, no princípio de Outubro. A medida vai ser debatida numa reunião que os dirigentes sindicais marcaram para esta sexta-feira.
Segundo os presidentes da ASPE e do Sindepor, os principais pontos que separam o Governo e os sindicatos e que não permitiram consenso nas negociações são o descongelamento das progressões na carreira e o aumento do salário base dos enfermeiros, de cerca de 1200 euros brutos para 1600 euros.
com Leonete Botelho