O produtor Paulo Branco sobre a polémica em torno de Branca de Neve : "A RTP detesta o cinema português"

Paulo Branco garante que devolverá o que deve ao ICAM. Diz que esta polémica é absurda. Acusa a RTP de se estar a servir dela para acabar com o apoio ao cinema português.

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Paulo Branco RB RICARDO BRITO
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João César Monteiro Direitos Reservados

Esta entrevista foi publicada na dia 11 de Novembro de 2000 integrada num dossier dedicado à estreia de Branca de Neve.

O produtor de Branca de Neve admite ter sido surpreendido com a evolução do filme para um ecrã quase sempre negro, mas diz que a surpresa faz parte do trabalho com um grande cineasta: "João César Monteiro está sempre à frente do que esperamos dele". Irrita-se com a polémica e acusa a RTP de se servir dela para acabar com o apoio ao cinema português. Garante que vai devolver ao ICAM o dinheiro que recebeu a mais, 50 mil contos, que as regras foram cumpridas e as contas apresentadas.

Quanto é que o filme custou, exactamente?
139 mil contos. O orçamento original era de cerca de 270 mil contos. Portanto, tivemos direito ao subsídio máximo, 130 mil contos. Depois o filme teve uma evolução artística, custou menos, logo, pelas regras existentes, só tenho direito a um subsídio de 70 mil contos.

 Já tinha recebido o dinheiro todo do ICAM?
Não, recebi no princípio da rodagem cerca de 115, 120 mil contos, não me recordo bem. É lógico que a modificação do orçamento surgiu já em plena rodagem.

Já devolveu a diferença?
Entreguei as contas todas, estou à espera da análise deles, e está tudo preparado para ser devolvido. A esse nível, a polémica é absurda, só existe se quiserem que exista, a transparência é completa e sempre foi tudo feito em perfeito acordo com o ICAM e as outras entidades. É preciso não esquecer que a utilização deste dinheiro [o custo real do filme] tem a ver com muitas pessoas que trabalharam no filme, não foi só a questão dos décors e do guarda-roupa, mas a equipa, os actores que tinham contratos... portanto uma boa parte dos encargos é minha, uma vez que só tenho direito a um subsídio de 50 por cento do custo.

A que se acrescenta o apoio da RTP...
À partida era de cerca de 50 mil contos, que foram reduzidos, por proposta minha, devido ao carácter experimental que o filme tinha, para 20 mil. Até agora não recebi nada. Um tostão. Nem deste filme, nem de outros. Tenho, em contratos com a RTP, centenas de milhares de contos para receber. A RTP obriga-nos a assinar contratos em que os pagamentos são extremamente tardios. É uma situação perfeitamente escandalosa.

Regressando a Branca de Neve...
Não tenho que esclarecer mais nada. O filme é o que é, teve a evolução que teve, neste momento pode ser julgado nas salas, as contas foram entregues, as regras foram cumpridas.

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Cartaz do filme Branca de Neve

Mas para perceber a evolução durante a rodagem, que determinou o resultado final e a redução do custo. Quanto tempo houve de rodagem? Quando é que soube da decisão de César Monteiro de ter o ecrã negro durante uma hora?
Durante a rodagem. Como produtor, assumo o filme completamente, gosto dele, cumpri todas as regras existentes relativamente aos subsídios, desde que houve uma evolução artística do projecto, avisei o ICAM. Não há mais nada a dizer. Os detalhes do meu diálogo com o realizador não são públicos, não serão nunca, com o João César Monteiro, ou com outro. Independentemente do que qualquer um dos realizadores quiser dizer, até mal de mim.

Quando João César Monteiro lhe revelou a sua opção final, teve dúvidas?
Segui a evolução do filme, que teve várias modificações. Houve muito pouco tempo da rodagem. A única preocupação que tive foi, a certa altura, foi perguntar a João César: "É este definitivamente o teu projecto?" Desde o momento em que ele me disse que era, as coisas estavam esclarecidas para mim. Dou uma grande liberdade aos realizadores, quando há modificações, sou prevenido umas vezes antes, outras vezes depois. Não estava à partida previsto que o filme tomasse esta forma, mas é obviamente muito mais do que um ecrã negro. E o que é grave é que há pessoas no interior da RTP que se estão a servir da polémica de "Branca de Neve" para pôr em causa o apoio da RTP ao cinema português.

 De quem está a falar, concretamente?
Da própria direcção da RTP, do próprio director de programas, do senhor Jaime Fernandes, do dr. Pedro Bandeira Freire, que trabalha na RTP, e da própria administração. Neste momento já põem em causa a recondução do acordo que têm com o ICAM do apoio automático ao cinema português. As próprias declarações do poder político já levam a isso, a admitirem modificações nesse sentido. Quando se sabe que só para os direitos do Big Brother a TVI gasta dois milhões de contos, e que para a produção de cinema em Portugal há um milhão de contos por ano, e que esse milhão vai dar trabalho a não sei quantas pessoas...! Além de que somos obrigados a ir lá fora buscar dinheiro para completar os financiamentos, e esse dinheiro é gasto cá. Isso nunca é referido! O que é grave nesta polémica é que muitas pessoas se servem dela para acabar com as fragilidades que existem ainda na produção em Portugal. O problema não é meu, como produtor, que posso fazer filmes no mundo inteiro, mas como cidadão perco alguma coisa. As declarações extremamente defensivas do secretário de estado e do próprio ministro incomodam-me. Em vez de lutarem para que haja mais meios, fazem o contrário. As pessoas que no fundo detestam o cinema português estão a tentar mais uma vez...

A RTP detesta o cinema português?
Detesta! Detesta! Na antestreia [anteontem], estava algum representante da RTP, tirando o dr. Pedro Bandeira Freire, que disse o que disse? [na apresentação do filme, João César Monteiro lembrou, ironicamente, o facto de um membro do júri do ICAM (Bandeira Freire) se ter chocado com as "cenas sexualmente explícitas" do texto, e Bandeira Freire, de pé, ao fundo da sala, ameaçou: "Vou-te aos cornos"] Estava o secretário de estado, o ministro, algum membro do governo? Foram todos convidados! Têm medo de quê? Eu recuso-me a baixar o nível do debate, isto não é o Big Brother!

Para encerrar: a opção final de João César Monteiro pela quase ausência de imagem pode ser o sintoma de uma crise da relação dele com o cinema, da possibilidade do cinema?
Tenho uma grande admiração por João César Monteiro. O grande prazer na produção de Branca de Neve é que fui surpreendido. E gosto muito do filme. Acho que é dos trabalhos mais sérios dele. Há uma fruição de uma interpretação de um dos maiores textos da literatura do século XX, que se dá a conhecer agora neste país, e na possibilidade ou não de o representar. Penso que não representa nenhuma crise. Podia ser interpretado assim, mas penso que é a única fórmula cinematográfica relativamente a este projecto, a este texto do Robert Walser, simplesmente a confrontação de João César, muito pensada, com este texto. Não faz parte de nenhuma crise. Estou absolutamente seguro disso. Os grandes cineastas estão sempre à frente do que esperamos dele, o César estará já à frente do que nós, inclusivamente eu como produtor, esperamos dele. E isso é que é fascinante.

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