Depoimentos no dia da estreia de Branca de Neve

Este texto foi publicado no dia 11 de Novembro de 2000.

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DRO - Daniel Rocha Pœblico

Défice de rigor nos subsídios

António-Pedro Vasconcelos*

"Em relação ao filme de João César Monteiro - que não ouvi -, devo dizer que tenho total respeito pela liberdade de expressão de qualquer autor. Dizem-me que é um filme praticamente sem imagens. Não tenho nada contra que se façam filmes assim, desde que alguém os pague. A questão é que, neste caso, ele foi pago pelo Estado. A partir daqui, a polémica era inevitável e tem, pelo menos, a vantagem de chamar a atenção para a urgência de modificar todo o sistema de financiamento do cinema português. É fácil vir invocar o direito do artista quando o que está em causa é que tem havido um défice de equidade, rigor e transparência nos subsídios do ICAM.

Para a solução deste caso, vejo três hipóteses. A primeira, radical, é reclamar a devolução do subsídio se o filme não corresponder ao projecto apresentado a concurso. A segunda, que seria um perigoso precedente, é o ICAM aceitar as contas que lhe forem entregues pelo produtor, com despesas - actores, décors, etc... - não visíveis na cópia final. A terceira, a mais pacificadora, é o ICAM designar um grupo de peritos para avaliar os custos do que se vê e ouve no filme, e pagar 50 por cento.

Mas o importante é aproveitar este incidente para alterar radicalmente os regulamentos dos concursos, que estão completamente inquinados, e dotar o ICAM de meios de controlo efectivo dos custos dos filmes que financia. Além de que os júris, compostos maioritariamente por críticos, são uma perversão, porque estes já não só julgam os filmes como decidem, a priori, aqueles que merecem ou não ser feitos.

Este caso veio mostrar a urgência de se tomarem as medidas que há muito tempo eu e a minha Associação vimos reclamando para tornar o cinema uma actividade sustentada. Isto implica tornar o investimento do Estado supletivo criando-se, entretanto, mecanismos mais objectivos para o financiamento dos filmes, ao mesmo tempo que se adoptem medidas de regulação da distribuição e exibição e de imposição de investimentos às televisões, diversificando assim as fontes de financiamento e os centros de decisão."

*realizador e presidente da ARCA - Associação de Realizadores de Cinema e Audiovisual

Consistente e coerente

João Mário Grilo*

"O filme é completamente consistente e coerente, é um filme duplamente negro. É negro porque formalmente é mesmo assim e ao mesmo tempo é também um gesto impossível de desligar da posição que o próprio João César Monteiro tem perante as imagens que hoje se fazem. Por outro lado, é coerente por ser o que é e sobre aquilo que é, um outro final da história da Branca de Neve que toma posição ao lado do conto de Walser, contra toda a iconografia que está agarrada à versão original da Walt Disney.

As pessoas que estiveram na origem dessa polémica devem estar arrependidíssimas de terem-no feito, porque falaram sem ver o filme.

Estou a falar principalmente das pessoas que são eleitas para o Parlamento, que vivem de um ordenado que eu próprio também pago e que deviam ter noção de que não se pode falar em certas coisas, a não ser quando se tem delas um conhecimento absoluto. Isto é que é muitíssimo negro, não tem imagens nenhumas, são imagens hiper-deprimentes de um país que eu pensava que já tinha acabado e que, afinal, está bem vivo, bem desperto e que até recebe dinheiro por existir.

A arte é boa quando põe as pessoas a andarem à volta dela. É péssima quando se põe a andar à volta das pessoas. Toda a arte serve para dividir opiniões e pessoas, para provocá-las e questioná-las. Só o Big Brother é que une as pessoas."

*cineasta

O melhor filme do realizador

Manoel de Oliveira*

"A polémica pública em volta do filme de João César Monteiro não me interessa. Não tenho nada com isso. Interessa-me apenas o aspecto cinematográfico e artístico. E sobre isso posso dizer que vi ontem [anteontem] "Branca de Neve" e acho que é o melhor filme do realizador. É uma obra extremamente corajosa e uma fortíssima pedrada no charco nesta velha mania que as pessoas têm de que o cinema é movimento. Pois o filme que vi é o movimento por excelência. Porque só a palavra e o pensamento - que não são fixas, como as pinturas nos quadros e nos museus - são verdadeiro movimento. E este filme expressa isso de forma corajosa e inédita.

O João César Monteiro é, quanto a mim, uma espécie de Pasolini português - um Pasolini um pouco desordenado. Mas neste seu filme é absolutamente ordenado e de um erotismo cândido, coisa rara e de espantar. Ao contrário de Pasolini, que é violento, chocante e perverso, César Monteiro manifesta em "Branca de Neve" uma grande candura, e o próprio erotismo é cândido. Este é o outro lado extraordinário da sua obra.

O cinema português, com este filme, dá mais um passo de vanguarda. Não posso se não congratular-me por ver realizadores portugueses que se afirmam deste modo excessivo mas acertado. O filme de César Monteiro é totalmente espírito, não é matéria. A palavra e o sentimento são vida de espírito. Isto é muito bonito neste filme, que é diferente dos meus que são muito concretos e em que o espírito se esconde sempre atrás de uma imagem muito presente e construída, muito maciça."

*realizador

Não vejo a polémica

João Bénard da Costa*

"Gostei muito do filme. Já o vi duas vezes e gostei realmente muito dos aspectos formais do filme. Quanto ao financiamento em si, não vejo onde possa estar a polémica. Tudo quanto eu sei sobre o assunto - e que não é da minha competência - é que o produtor devolveu ao ICAM uma parte do subsídio que tinha recebido, exactamente por ter gasto menos dinheiro do que aquele que o filme estava inicialmente previsto custar. Não faço a mínima ideia de quais são os custos envolvidos e sobre essa questão não me posso obviamente pronunciar. Mas se o filme custou menos, fizeram bem em ter devolvido o excedente. Todos os produtores deviam fazer o mesmo quando situações destas acontecem. Quanto à opção do realizador, é uma opção estética como qualquer outra. E uma das grandes vantagens que temos em Portugal é que os realizadores podem fazer os filmes que querem e como querem, livres de outras coacções. Sinceramente não percebo onde é que reside o lado polémico." 

*Director da Cinemateca Portuguesa

Depoimentos recolhidos por Sérgio C. Andrade, Rita Cupido e Tiago Luz Pedro

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