A procuradora que grita nos interrogatórios
Pertenço ao grupo de pessoas que ficou estupefacto pela forma como Cândida Vilar se dirigiu a Fernando Mendes, ex-líder da Juve Leo e um dos suspeitos de estar envolvido nos ataques à Academia de Alcochete.
A Procuradoria-Geral da República anunciou a abertura de um inquérito criminal para averiguar a fuga ao segredo de justiça no caso das gravações dos interrogatórios a membros da claque da Juve Leo. O inquérito tem também o objectivo de verificar se existem elementos que possam dar origem a um processo “de eventual responsabilidade disciplinar” contra a procuradora Cândida Vilar, pela forma como tais interrogatórios foram conduzidos. Há duas observações que eu gostaria de fazer acerca disto.
A primeira observação é precisamente sobre a condução do interrogatório, já que pertenço ao grupo de pessoas que ficou estupefacto pela forma como a procuradora se dirigiu a Fernando Mendes, ex-líder da Juve Leo e um dos suspeitos de estar envolvido nos ataques à Academia de Alcochete. Já há muitos anos, quando Eduardo Prado Coelho foi meu professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, ele contava uma história muito divertida sobre a diferença entre os polícias de trânsito portugueses e franceses. Os polícias franceses, se apanhavam alguém a transgredir, limitavam-se a passar a respectiva multa, sem dar azo a conversas. Os portugueses, além da multa, nunca resistiam a passar igualmente um sermão, como se a lei exigisse não só o pagamento da coima, mas também um acto de profunda contrição por parte do prevaricador, e a sua evangelização por parte do agente.
O polícia francês diz: “Vá e não se esqueça de pagar.” O português diz: “Vá e não volte a pecar.” Ora, foi este espírito padreco, no mau sentido da palavra, que me pareceu encontrar no interrogatório de Cândida Vilar. O que me chateou não foi ela soar tão ribombante e abrutalhada, mas sim o tom de professora primária que está a meter o menino malcomportado na ordem. Não me parece que o senhor Fernando Mendes tenha idade para isso, nem que seja esse o trabalho de uma procuradora. Em vez de fazer perguntas factuais, Cândida Vilar envolveu-se numa discussão sobre o bem e o mal, a verdade e a mentira, o amor e o ódio, que fica muito bem numa aula de catequese, mas muito mal numa sala reservada a um interrogatório judicial. Neste aspecto, aprecio mais a escola francesa.
A segunda observação que me parece pertinente é esta: este caso é igualmente útil para verificarmos como há ocasiões em que nós ouvimos um interrogatório judicial e o mais importante é a fuga ao segredo de justiça (e, portanto, é uma vergonha a opinião pública prestar atenção ao que lá foi dito), e há outras ocasiões em que nós ouvimos um interrogatório judicial e o mais importante é o que lá foi dito (e, portanto, a opinião pública não precisa de prestar assim tanta atenção à fuga ao segredo de justiça).
Fernanda Câncio assinou um texto na TSF – “O sketch da procuradora” – onde critica com bastante veemência Cândida Vilar, e com o qual estou muitíssimo de acordo. É um texto que adopta uma postura meritória e muito saudável, que espero que comece a ser aplicada a todas as situações, sem excepção. Embora as fugas ao segredo de justiça sejam sempre de lamentar, por incumprirem as leis da República, não é à opinião pública que compete protegê-lo. Por isso, quando os interrogatórios caem no espaço público, o seu conteúdo pode e deve ser tido em conta, dispensando-se a postura daqueles que põem carinha enjoada e fingem que não ouviram o que ouviram. E isso é tão válido quando é o Ministério Público a fazer má figura, como quando são certos arguidos a enterrarem-se até ao pescoço.