Abusos sexuais de padres na Pensilvânia são teste ao Papa
Vaticano quebra 48 horas de silêncio para lamentar "crimes horríveis". Dezasseis anos depois do escândalo de Boston, a Igreja Católica americana continua a esconder o seu passado de crimes sexuais.
Ao fim de 48 horas em que o silêncio foi a única reacção do Vaticano ao mais recente escândalo de abusos sexuais na Igreja Católica, desta vez no estado norte-americano da Pensilvânia, o porta-voz do Papa Francisco veio dizer que as palavras "vergonha e pesar" são as mais indicadas para "exprimir os sentimentos provocados por estes crimes horríveis".
"Os abusos descritos no relatório são censuráveis em termos criminais e morais. A Igreja tem de aprender lições duras com o seu passado, e tanto os abusadores como quem permitiu que os abusos acontecessem devem ser responsabilizados", disse Greg Burke num comunicado publicado na noite de quinta-feira.
Dois dias antes, o procurador-geral da Pensilvânia, Josh Shapiro, tinha aparecido perante as câmaras de televisão para revelar as conclusões de um relatório sobre denúncias de abusos sexuais em seis das oito dioceses do estado.
Os sinais de que as conclusões desse relatório eram terríveis para a Igreja Católica, e para a confiança que milhares de fiéis da Pensilvânia depositaram nela ao longo de décadas, já circulavam há meses – desde Maio que alguns dos padres acusados tentavam travar a divulgação do documento, exigindo que os seus nomes fossem pintados com uma barra negra até se tornarem ilegíveis. Antes disso, segundo o procurador-geral, também os responsáveis pelas dioceses tinham tentado "evitar que o relatório visse a luz do dia". Por outras palavras, "tentaram ocultar a ocultação", disse Shapiro.
"Aconteceu em todo o lado"
Mas poucos estariam à espera de que o padrão de abusos sexuais na Pensilvânia fosse ainda mais grave do que o pior dos muitos casos conhecidos nos Estados Unidos desde 2002 – em Boston, onde tudo começou, mas também em Chicago, Los Angeles, Portland, Louisville, Orange County, Seattle, San Diego, Denver e muitas outras cidades, num desfiar de escândalos que levaram a Igreja Católica a pagar mais de mil milhões de dólares de indemnizações a mais de 1800 vítimas nos últimos 15 anos.
É por isso que a dimensão do que aconteceu na Pensilvânia desafia a compreensão e merece um aviso logo no primeiro parágrafo: "Houve outros relatórios sobre abusos sexuais de crianças na Igreja Católica. Mas nunca nesta escala. Para muitos de nós, as histórias mais antigas aconteceram noutros sítios, em locais afastados. Agora sabemos a verdade: aconteceu em todo o lado."
Ao todo, o grande júri e o gabinete do procurador-geral da Pensilvânia identificaram mais de mil vítimas, que foram violadas e abusadas sexualmente de várias formas por mais de 300 padres nas seis dioceses investigadas, sendo o registo mais antigo de 1947. Em comparação, o escândalo revelado pelo jornal Boston Globe em 2002 envolveu entre 150 e 250 padres.
E os números do escândalo na Pensilvânia podem ser ainda maiores, já que muitos registos foram perdidos ao longo das décadas e muitas outras vítimas ficaram em silêncio, o que leva as autoridades a acreditarem que o número real "é da ordem dos milhares".
"Respeito ao bispo"
Um dos exemplos relatados é o caso do padre Ernest Paone, que escapou a ser detido por "molestar rapazes e usar armas com crianças" em Maio de 1962. Nos registos secretos da igreja – abertos nos últimos dois anos por ordem do grande júri que investigou o caso – está escrito que outro padre e um bispo intercederam junto de um procurador distrital para que Paone ficasse em liberdade, ainda que o seu comportamento tenha sido descrito como "degradante para o sacerdócio" e "escandaloso para os paroquianos". Como castigo, o padre Ernest Paone foi transferido para outra paróquia, a algumas dezenas de quilómetros de distância.
Meio século depois, o procurador distrital que aceitou arquivar as acusações contra o padre Paone foi ouvido pelo grande júri na investigação sobre o escândalo de abusos sexuais na Pensilvânia. Robert Masters, actualmente com 87 anos, disse à comissão de inquérito que não deu seguimento às acusações "por respeito ao bispo" e por esperar o apoio da diocese para a sua carreira política – na quarta-feira, um dia depois da divulgação do relatório, Robert Masters foi despedido do centro de assistência social onde ainda trabalhava como advogado.
Para além da denúncia de uma prática de encobrimentos e silêncios que marcou a Igreja Católica da Pensilvânia pelo menos entre a década de 1940 e o início dos anos 2000, o relatório revela alguns dos casos mais perturbadores – uma criança de sete anos que foi violada no hospital por um padre quando estava a recuperar de uma operação de remoção das amígdalas; uma outra vítima que foi forçada a despir-se e a ajoelhar-se para depois ser amarrada e chicoteada; e um padre a quem foi permitido continuar na igreja depois de ter engravidado uma adolescente e de a ter levado a abortar.
"Outro padre, que decidiu resignar após anos de queixas de abusos sexuais, pediu e recebeu uma carta de recomendação para o seu empregador seguinte – o Walt Disney World", lê-se no relatório.
Para a esmagadora maioria das vítimas na Pensilvânia, o único consolo é a possibilidade de verem a sua história de sofrimento contada e compreendida, já que a lei do estado não permite que as vítimas tentem obter indemnizações se tiverem mais de 30 anos de idade na altura da queixa, nem que as autoridades apresentem acusações criminais se a vítima tiver mais de 50 anos.
O desafio de Francisco
Apesar do comunicado publicado na noite de quinta-feira pelo Vaticano, a forma como o Papa Francisco tem lidado com os escândalos de abusos sexuais de crianças e jovens está a ser criticada em vários sectores da Igreja nos Estados Unidos.
"Esta crise representa um teste crucial para o papado de Francisco, que por vezes tem mostrado dificuldades em enfrentar o tema do abuso sexual na Igreja. Alguns católicos temem que a capacidade do Papa para servir de testemunha moral para o resto do mundo possa ser comprometida se ele não agir de uma forma decisiva", considera Daniel Burke, editor de Religião na CNN.
No site da revista Fortune, a presidente da organização de defesa dos direitos da criança Child USA, Marci Hamilton, é ainda mais dura na forma como olha para o passado de ocultação e silêncio na Igreja Católica dos Estados Unidos: "A instituição e os bispos tiveram mais uma vez carta-branca, como se não estivéssemos a falar de uma organização criminosa no sentido mais clássico. Chegou a hora de responsabilizar a Igreja Católica por tudo o que tem feito", diz Hamilton, sugerindo que a Igreja Católica seja levada a tribunal sob a acusação de "organização criminosa".