Morreu Pedro Morais, um artista que é quase um segredo

Autor de uma obra rigorosa em que a escultura, a pintura, o desenho e o som contribuem para a criação de situações e espaços que nos questionam, Pedro Morais foi também um daqueles professores que marcam os seus alunos. Pela forma como vivia e olhava para o mundo.

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Pedro Morais nasceu em Lisboa em 1944 DR/Manuel V Botelho

Nunca tencionou esconder a sua obra, mas também nunca se quis ver enredado no mercado das galerias nem nas programações apressadas dos museus. Expunha o seu trabalho, sempre com “intenso sentido crítico e uma imensa generosidade”, quando a oportunidade surgia, mas não a procurava. É assim que o curador João Fernandes, que comissariou a exposição que o Museu de Serralves lhe dedicou em 2006, Locus Solus [e] Dokusan, justifica a “quase invisibilidade” do artista plástico Pedro Morais, que morreu vítima de cancro na noite de sexta para sábado, em Lisboa.

“O Pedro construiu uma obra em que o fazer era inseparável do ser. A maneira como vivia, como sentia e como se dava com todos aqueles que o rodeavam eram coisas para manter na intimidade, mas acabavam por passar para a obra e para a maneira como a mostrava. Ele gostava de partilhar os seus trabalhos, mas não a todo o custo”, diz Fernandes, hoje director-adjunto do Museu Rainha Sofia, em Madrid, lembrando que conheceu o artista já há muitos anos numa das situações em que estava mais à vontade, rodeado dos seus alunos.

Nascido na capital em 1944, Pedro Morais começou por fazer a sua formação na Secundária António Arroio e seguiu depois para as escolas de Belas-Artes de Lisboa e de Paris, cidade onde viveu entre 1965 e 1977 e onde chegou a ser bolseiro da Fundação Gulbenkian (1967-68). Foi no regresso a Portugal e à António Arroio que se entregou ao projecto que viria a marcar a sua carreira como professor, o Atelier Livre, que dirigiu entre 1979 e 1994 e que continua a ser uma referência, uma experiência que devia ser levada em conta numa reflexão que urge fazer no sentido da reforma do ensino artístico no país, defende João Fernandes, antigo director do Museu de Serralves.

“Com o Atelier o Pedro criou um lugar onde se podia fazer, algo fundamental para um jovem artista. Um espaço onde se trabalhava e onde se conversava sobre esse trabalho, sem que o professor se pusesse a dar opiniões explícitas”, acrescenta. Com frequência, o seu comentário era deixar um objecto, fosse uma pedra ou um papel, capaz de servir de novo ponto de partida a outras leituras daquilo que acabava de ser mostrado ou discutido.

O artista plástico Francisco Tropa, hoje com 49 anos, faz parte dessa geração de alunos que Pedro Morais influenciou com o seu exemplo, com a sua maneira de estar e de olhar para a arte e para o mundo. Com a sua morte perde um mestre, mas também um amigo. “Com uma sabedoria enorme, o Pedro fez do Atelier um espaço de liberdade em que nós aprendíamos sem dar por isso”, diz ao PÚBLICO. Artista que admiravam, abriu-lhes um “mundo maravilhoso” ao pô-los em contacto com outros criadores que eram também seus amigos chegados, como Lourdes Castro, René Bertholo ou Manuel Zimbro, ajudando os alunos a encontrarem, de “maneira simples, discreta”, os seus próprios caminhos, sem nunca interferir nessa descoberta.

“Acho que posso falar por todos [os seus alunos] e dizer que haverá sempre qualquer coisa dele em nós e no que fazemos. Qualquer coisa que é difícil de explicar mas que está lá”, acrescenta Tropa, antes de sublinhar a importância que na obra de Morais tem o que é feito à mão: “A construção da obra do Pedro passa muito pelas mãos, por uma atenção ao mais pequeno dos detalhes. E ele era assim na obra porque era assim na vida.”

O artista preferia levar os que o rodeavam a descobrir as coisas por si, o que fazia dele um “professor extraordinário”, garante Fernandes, que nunca foi formalmente seu aluno, mas que com ele aprendeu muita coisa. Tinham interesses comuns, da filosofia Zen a Raymond Roussel (1877-1933), escritor francês no centro de um universo pleno de excentricidades, passando pela literatura oriental, em particular a poesia japonesa, de que Morais era grande conhecedor.

Todos os seus alunos (além de Tropa, Marta Soares, Edgar Massul, Rui Calçada Bastos ou André Maranha) e amigos beneficiaram da sua atitude de partilha permanente e da sua forma muito peculiar de interpelar os outros através da arte, diz. A mesma atitude que, em 1975-76, lhe permitiu pedir a alguns dos que lhe eram mais próximos que distribuíssem por vários lugares de Paris, obedecendo a um desenho que tinha feito sobre o mapa da capital francesa, as cinzas que resultaram da destruição de praticamente todos os trabalhos que tinha produzido de 1964 até então. “Com este apagar da produção da primeira década, o Pedro leva longe a reflexão que [Marcel] Duchamp expõe num texto que escreve sobre o processo criativo em que diz que a arte tem de se libertar de qualquer intenção, de qualquer propósito.”

A partir do começo da década de 1980, Pedro Morais participa em várias exposições colectivas e individuais, mostrando o seu trabalho na Sociedade Nacional de Belas Artes, na Escola António Arroio, no Museu Nacional de Arte Antiga, na Fundação Gulbenkian, em Serralves, no espaço Sismógrafo ou no Chiado 8. Nele a escultura, a pintura, o desenho e o som cruzam-se para criar obras de grande rigor que colocam o observador perante situações que é chamado a experimentar através de um objecto ou uma arquitectura, explica João Fernandes, situações carregadas de enigmas.

“O Pedro sentia uma responsabilidade extrema de acrescentar algo ao que ele conhecia do mundo e fazia-o construindo discursos maravilhosos sobre as coisas”, diz, lembrando a obra que fez para o Parque de Serralves a partir do romance mais conhecido de Roussel, Locus Solus (1914), e que o crítico de arte Óscar Faria descrevia assim num texto que em Abril de 2006 escreveu para o PÚBLICO e em que se referia a Morais como “um dos nomes mais secretos e influentes da arte portuguesa actual”: “[Locus Solus III é] um lugar solitário, uma pintura a três dimensões, uma arquitectura civil, um corredor de cal pintada e água corrente, que sublinha a necessidade de uma atenção permanente à respiração, ao mundo.”

Foi no Pavilhão Branco do Museu de Lisboa que, já este ano e com comissariado do mesmo Óscar Faria, teve a sua última exposição, Nudez – Uma Invariante, a que o crítico chamou uma “retrospectiva de bolso” e em que pôde ver-se uma série de obras devedoras das suas influências de sempre: da pintura como “coisa mental”, a partir de Leonardo da Vinci e Marcel Duchamp, às palavras do seu mestre zen japonês, Hôgen Yamahata (autor de Folhas Caem, Um Novo Rebento, Assírio e Alvim, 2002).

“É verdade que a sua obra pode ser de certa maneira secreta, mas não deixa de ser muito importante”, conclui Francisco Tropa. Muitos não o conhecem, garante, porque a sua produção é quase toda ela efémera. “O Pedro não deixava quase nada para trás. As coisas faziam-se num momento, num lugar, e depois desapareciam.” Desapareciam como o fumo que se vê numa das suas últimas peças, que João Fernandes filmou e publicou no seu Facebook, junto a um texto onde escreve: “O Pedro foi sempre uma luz no meu firmamento mais íntimo — como essas estrelas que iluminam independentemente do tempo em que existem. […] Ter conhecido a sua integridade, esse saber bonito e quase invisível com que me ensinou que não há diferença entre a presença e a memória, a voz e o silêncio, a sombra e a luz, tudo quanto parece o oposto de si mesmo e tudo o que nos completa em cada momento que vivemos, será sempre um caminho mais acessível ao continuar na sua companhia.”

O velório está marcado para a Igreja de Arroios, em Lisboa, a partir das 17h desta segunda-feira. O funeral sai no dia seguinte, às 11h, com destino ao Cemitério do Alto de São João.

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