Estes criminosos portugueses do século XIX foram ao fotógrafo
Conhecem-se pelas alcunhas, por pequenas biografias publicadas na época e até por entrevistas que deram aos jornais. Uns foram presos por roubar galinhas, carteiras e jóias, outros por falsificarem moeda ou por matarem o filho recém-nascido. A todos a polícia de Lisboa mandou tirar o retrato. Um novo livro vem agora falar-nos destas mugshots à portuguesa. Com ele, os retratos judiciais mais antigos conhecidos em Portugal recuam 30 anos, até 1869.
Foi sobretudo a cultura popular americana que as trouxe até nós através dos filmes e da televisão, dos sites e das biografias de celebridades, das revistas e dos jornais. Foi lá que nos habituámos a encontrar as estrelas do cinema e da música fotografadas de frente e de perfil, com um número comprido junto ao peito, depois de terem sido detidas por conduzirem alcoolizadas, por fazerem corridas na auto-estrada ou por participarem em manifestações contra a guerra do Vietname que acabaram em confrontos com a polícia. Algumas destas fotografias tiradas nas esquadras — mugshots, assim se chamam — transformaram-se em conversas de café e peças de museu, entraram para o imaginário colectivo e passaram a fazer parte do que julgamos saber sobre Elvis Presley e Jimi Hendrix, Jane Fonda e Steve McQueen, Jim Morrison e Frank Sinatra, David Bowie e Marilyn Monroe, Janis Joplin e Johnny Cash, Mick Jagger e Kurt Cobain.
Muito menos famosos, mas também eles detidos e fotografados, alguns dos criminosos portugueses da segunda metade do século XIX têm agora um livro em que Leonor Sá, conservadora do Museu da Polícia Judiciária, explora o universo do retrato judiciário em Portugal, partindo de dois álbuns que reúnem fotografias tiradas entre 1869 e 1895 e que hoje pertencem a um coleccionador privado. “Estas são as mais antigas mugshots à portuguesa, feitas à medida do nosso século XIX”, diz a autora. São exemplares do chamado “retrato repressivo”, criado para responder às necessidades de controlo dos estados que, dado o aumento demográfico, o crescimento das cidades, a transformação económica provocada pela indústria e as frequentes convulsões políticas e sociais se vêem a braços com problemas de segurança e crime cada vez mais agudos desde os finais do século XVIII.
Em Infâmia e Fama. O mistério dos primeiros retratos judiciários em Portugal (1869-1895), um volume com 280 páginas que resultou de uma tese de doutoramento e que as Edições 70 lançaram recentemente, Leonor Sá começa por dar ao leitor o contexto internacional deste género de retrato, mostrando-lhe como apareceu e como evoluiu. Em seguida, concentra-se no caso português e nos dois álbuns que Francisco Teixeira da Mota, advogado e colunista do PÚBLICO, comprou num leilão há quase 20 anos e que reúnem cerca de 300 fotografias, 24 das quais respeitantes a indivíduos cujo percurso, mais ou menos breve, é traçado na Galeria de Criminosos Célebres em Portugal. História da criminologia contemporânea (1896-1908), uma das várias fontes a que a autora recorre, sobretudo quando procura dados biográficos.
Leonor Sá analisa essas 24 imagens com mais detalhe e com este livro retrata a sociedade da época, enriquecendo a historiografia sobre o século XIX português, defende no prefácio Filipa Lowndes Vicente, investigadora do Instituto de Ciências Sociais que tem dedicado boa parte do seu tempo à história da fotografia e à cultura visual no contexto colonial.
“Se olharmos para a imprensa, a Lisboa da segunda metade do século XIX, como nos mostra Maria João Vaz [autora de Crime em Lisboa, 1850-1910], está cheia de furtos e pequenos crimes, está cheia de delinquentes reincidentes até à última”, diz Sá.
Numa época em que os crimes recebiam cada vez mais atenção mediática e o romance policial começava a fazer sucesso, as páginas dos diários que circulavam aos milhares pela capital enchiam-se de notícias de furtos e escaramuças e, de quando em vez, havia um ou outro ladrão, fosse operário ou criada de servir, que tinha direito a entrevista de primeira página com fotografia e tudo. “Como hoje, as pessoas queriam saber, seguiam as histórias de crime, sobretudo as mais violentas, que felizmente não eram muitas.”
Foi assim, por exemplo, com A Matricida, uma mulher que matou e esquartejou a mãe, protagonizando um caso que até deu origem a títulos da literatura de cordel, um deles do jovem Camilo Castelo Branco (Maria não me mates que sou tua mãe!). A Galeria de criminosos célebres em Portugal tem o seu perfil, assim como o de Maria da Luz Botelho da Silva, açoriana de 24 anos que matou o marido servindo-lhe um prato de arroz com arsénio. Ele, médico nascido em Coimbra e 14 anos mais velho, fechava-a em casa e agredia-a; ela, farta dos seus ciúmes, queria fugir para Lisboa com o amante.
Leonor Sá não fala destas duas mulheres cuja história o semanário Expresso veio recordar em 2015 numa série a que chamou Crime à Segunda, mas apresenta-nos a Pianista e o Caramelo, ou a Giraldinha e o Físico, todos eles actores de primeira ordem num universo onde cabem muitas outras alcunhas (e vidas): o Ratão, o Lindinho, o Vidraças, o Mineiro, a Aguardenteira, o Larico…
Maria Rosa, a sedutora
O retrato que ilustra a capa do livro de Leonor Sá é de José Maria da Silva, um homem de 40 anos, nascido em Elvas, filho de pais incógnitos, que é acusado de falsificar moeda e que, depois de várias detenções, acaba condenado ao degredo. Conhecido como Caramelo, é fotografado bem vestido, de alfinete na gravata, e segurando na mão esquerda o objecto do crime, numa atitude desafiadora.
“Este Caramelo aparece na Galeria... mas com outro retrato. Era famoso na época e hoje esticamos-lhe a fama com esta capa”, diz a conservadora do Museu da Polícia Judiciária, sublinhando o ar sereno do falsário e contando que guardava esta fotografia da moeda, que saiu nas páginas dos jornais, no estojo das tesouras e navalhas que usava na prisão do Limoeiro, onde era barbeiro. “Ele tinha um enorme orgulho nesta imagem e costumava mostrá-la, como hoje mostramos a um amigo uma fotografia das nossa férias. Para ele, não havia nela nada que o envergonhasse.”
O retrato de Caramelo, como outros que encontramos em Infâmia e Fama e nos álbuns F.T.M. — Leonor Sá usa apenas as iniciais do proprietário para se referir aos dois volumes carregados de fotografias que começou a estudar em 2012 —, é tirado com um espelho para que, na mesma imagem, o vejamos de frente e de perfil, uma “solução ‘panóptica” que reforça, escreve a autora, a “vigilância fotográfica” dos suspeitos e que parece ter sido aplicada, no caso dos álbuns que lhe servem de base à tese, sobretudo às mulheres.
“Há uma diabolização da mulher criminosa. A imprensa da época parece exagerar nos adjectivos quando o acusado — e o retratado — é uma mulher.”
É precisamente a propósito das mulheres que um dos autores da Galeria..., Ferraz de Macedo, que coordenou três dos sete volumes desta obra e que viria a ser director dos Serviços Antropométricos e Fotográficos do Juízo de Instrução Criminal, chega a escrever: “Também o belo sexo dá um subsídio para a história do crime, e não tão pequeno, quanto o pode parecer à primeira vista. A mulher que tem a desgraça de vir ao mundo com a terrível tendência para o crime torna-se muito mais temível do que qualquer criminoso do sexo masculino […]. É que as mulheres, todos nós o sabemos, são muito mais maliciosas que nós outros homens. [...] Possuem em muito mais elevado grau a ciência de mentir e dissimular.”
Maria Rosa, solteira e com pouco mais de 20 anos, era uma destas mulheres nascidas para enganar, diria provavelmente Ferraz de Macedo. Delinquente que todos conheciam por Giraldinha, foi uma das mais famosas ladras portuguesas do século XIX. O ar humilde terá sido uma das principais armas desta mulher que era capaz de ludibriar até os que lhe eram mais próximos.
Para reforçar essa aparência modesta, a Giraldinha costumava usar vestidos de chita, um tecido barato, um lenço na cabeça com o nó para a frente e um xaile sobre os ombros, à maneira das antigas criadas.
Diz o seu perfil na Galeria que era uma “gatuna perigosíssima” com uma “finura perfeitamente fora do vulgar”. No tom quase teatral de muitas passagens desta publicação que tem pretensões de rigor mas que acaba por adoptar muitas vezes instrumentos da ficção, escreve-se ainda em referência a esta mulher com uma “boca sedutora”: “Aquela que foi engendrada para o mal confunde-se com a maldade dos demónios e contém o veneno das serpentes, os dentes dos monstros apocalípticos.”
No caso de Maria Rosa, sublinha Leonor Sá, o autor que lhe faz o perfil parece não conseguir compreender por que razão, tendo ela uns traços físicos agradáveis, prefere roubar a dedicar-se à prostituição. “É uma sociedade muito masculinizada, machista diríamos hoje. Da mulher, mesmo quando lhe é reconhecida inteligência, como no caso da Giraldinha, o que se espera é que faça uso da sua beleza, não da sua cabeça”, diz a investigadora.
Giraldinha era de tal forma uma “celebridade” que chegou a dar uma entrevista com honras de primeira página ao jornal A Tarde, a 1 de Maio de 1890, com direito a fotografia (precisamente a que está num dos álbuns Francisco Teixeira da Mota).
“Na época, a fotografia da primeira página dos jornais era reservada para figuras importantes da sociedade — membros da realeza, deputados, médicos, artistas — mas, a partir de dada altura, os criminosos passaram a ser incluídos neste grupo onde antes só havia gente ilustre.”
Nos cenários da burguesia
Foi em Julho de 2000 que Teixeira da Mota arrematou num “leilão bem disputado” os dois álbuns com 300 fotografias arrumadas em “janelas” encimadas pelo nome e/ou alcunha do retratado em letra miudinha e outros dados de registo. Aficionado da fotografia antiga e habituado a andar pelos alfarrabistas à procura de “brinquedos” novos — o advogado recusa a ideia de que os livros, gravuras e objectos que vai comprando formem uma colecção —, viu nos dois pesados volumes uma oportunidade para se “divertir”.
“É claro que fico satisfeito com a possibilidade de ficar a saber algo que ainda não sabia, mas para mim a parte lúdica, o prazer que tiro de objectos como estes [aponta para os álbuns abertos em cima da mesa] antecipa e justifica a ciência, a informação que trazem”, diz o cronista e autor de duas biografias sobre Alves dos Reis (Alves dos Reis. Uma História Portuguesa), burlão e falsificador, e Henrique Galvão (Henrique Galvão. Um Herói Português), militar português que foi o protagonista do mediático assalto ao paquete Santa Maria.
Quando comprou os dois álbuns, o que tencionava fazer era estudá-los, cruzando-os com outras fontes escritas da época, como a Galeria…, mas cedo percebeu que, para levar em diante essa tarefa, seria preciso que tivesse “outra vida”. “A Leonor Sá fez muito mais do que eu poderia ter feito, descobriu muita coisa. Eu não teria tempo”, acrescenta.
De facto, quando chegaram às mãos da conservadora do Museu da Polícia Judiciária, os álbuns F.T.M. não tinham sequer qualquer indicação de proveniência. Hoje, Leonor Sá não tem dúvidas de que são uma “encomenda” não oficial da Polícia Civil de Lisboa, feita quando esta força de segurança era ainda uma novidade (foi criada em 1867).
Para produzir estes volumes semelhantes a outros já estudados nos Estados Unidos e noutros países europeus, a polícia viu-se obrigada a recorrer a fotógrafos comerciais de Lisboa, que estão devidamente identificados, porque não dispunha ainda do equipamento nem dos conhecimentos necessários para o fazer em sede própria.
Os suspeitos, muitos deles criminosos já bem conhecidos da polícia e hóspedes frequentes das cadeias do Limoeiro (para homens) ou do Aljube (mulheres), eram então levados ao fotógrafo para que lhes fosse tirado o retrato para identificação e registo. Chegados lá, por regra, eram fotografados nos cenários que já estavam montados, o que chegava a criar um enorme contraste, já que o contexto era cuidado (colunas, tapetes, reposteiros) e os retratados estavam quase sempre com as roupas e os cabelos em desalinho, com uma aparência que denunciava as suas origens humildes: “Algumas destas primeiras imagens são feitas nos cenários da fotografia burguesa, o que cria de imediato uma sensação de desconforto aos nossos olhos já que a falta de sintonia entre uma e outra coisa é evidente. Estão despenteados, desabotoados, alguns até sujos, algo impossível num retrato da burguesia”, explica a autora. “A ironia aqui é que foi o facto de terem cometido um crime que lhes permitiu irem ao fotógrafo – de outro modo, provavelmente, nunca o conseguiriam pagar.”
Uma ironia de que o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) dera já devidamente conta no seu ensaio The Lives of Infamous Men, ao defender que tinha sido a conduta criminosa e a consequente perseguição policial a contribuir para a visibilidade de uma série de indivíduos que, de outro modo, jamais chegariam ao conhecimento do grande público. “A sua infâmia é apenas uma modalidade da fama universal”, escreve aquele que é um dos mais celebrados intelectuais europeus.
Com ou sem imagem, muitos dos criminosos ocupavam já as páginas da Galeria… e foi o facto de ter encontrado reproduzidos nesta obra em volumes 24 retratos dos dois álbuns de Teixeira da Mota que levou a investigadora a supor que têm origens comuns: a Polícia Civil de Lisboa e/ou os estúdios comerciais que esta força de segurança contratava para fotografar os supeitos (no caso dos álbuns F.T.M., 75% dos retratos são feitos pelo mesmo Atelier Bastos, que vai mudando de nome e de dimensão ao longo dos 26 anos que separam a primeira fotografia da última).
Uma “turba medonha”
A investigação de Leonor Sá que agora se publica permite, defende a autora na conclusão, antecipar em 30 anos o retrato judiciário português. Os exemplares mais antigos que até aqui se conheciam datavam de 1902 e tinham por origem o Posto Antropométrico do Porto.
A polícia portuguesa, tal como as suas congéneres europeias, integra os dois álbuns F.T.M. numa estratégia de combate ao aumento da criminalidade, escreve Sá, numa “lógica transversal de evolução científica e tecnológica, assim como de crescimento das preocupações taxonómicas, do controlo social biopolítico e da comunicação mediática de finais do séc. XIX”.
A polícia da época mandava fotografar os criminosos para registo pelo menos desde 1869, mas é bem provável que já antes o fizesse, uma vez que a autora encontrou indicação na Galeria… de que pelo menos um dos criminosos que lá figuram, Constantino da Silva, o Vidraças, terá sido fotografado em 1863, quando tinha apenas 13 anos e era já “célebre na gatunagem”.
Diz a investigadora que, na época, surgem em Portugal vários estudos que procuram acompanhar as mais modernas teorias no contexto internacional, sobretudo as de Cesare Lombroso (1835-1909), psiquiatra italiano a quem é atribuída a criação da antropologia criminal. Este médico acreditava que o criminoso podia ser equiparado ao doente e que havia no seu comportamento uma forte componente hereditária – a sua conduta desviante devia-se a algo inato que não podia controlar.
“No geral, acreditava-se que os criminosos vinham das classes sociais mais baixas e que tinham quase sempre características físicas negativas que funcionavam como indicadores ou reflexos dos seus comportamentos desviantes. Para simplificar, acreditava-se que um ladrão tinha cara de ladrão”, resume a investigadora. “Podia roubar por motivos sociais, como a falta de trabalho, mas a biologia tinha um peso grande na sua condição. Como se o crime estivesse inscrito no seu código genético, diríamos hoje, como uma doença que vem de um pai ou de um avô.”
Esta atitude perante o criminoso rapidamente venceu os limites do mundo científico e intelectual e chegou à opinião pública, através das páginas dos jornais.
A medicina e a antropologia criminal do século XIX, lembra a conservadora do Museu da PJ, contribuem para a ideia de que estes criminosos, na sua maioria pequenos delinquentes, formam uma massa indiferenciada e perigosa, uma “turba medonha”.
É a partir da década de 1880, continua Leonor Sá apostando ainda no enquadramento internacional, que o francês Alphonse Bertillon, que fundara um laboratório criminal concentrado nas medidas do corpo humano (antropometria), cria um protocolo para o retrato criminal que determina que o suspeito seja fotografado de frente e de perfil. “Com Bertillon esta fotografia passa a ter uma retórica própria e no registo é combinada com componentes antropométricas, que mais tarde são destronadas pelas impressões digitais, mais rápidas e mais fiáveis. É preciso ver que o discurso científico era muito ambíguo, contraditório até, aberto a interpretações contantes. Estes criminosos são vistos como parte de uma entidade colectiva – o indivíduo não interessa para nada.”
A Galeria de Criminosos Célebres em Portugal vem precisamente contrariar essa ideia de colectivo. As histórias que conta são as que se distinguem da tal “turba medonha”.
Tocar, bordar e roubar
Guilhermina Adelaide do Canto e Mello Araújo, a Pianista, entra nesta categoria. Era uma mulher elegante, bem vestida, uma professora de piano que falava línguas e ainda sabia bordar. Foi presa vezes sem conta por roubar jóias, roupas, tecidos, chapéus e outros artigos em lojas e casas de Lisboa, acabando por morrer no degredo, em Angola, depois de se envolver com outro delinquente, o Mesquita.
Quando os furtos aconteciam em ourivesarias do centro da cidade, por exemplo, era comum contar com a ajuda do filho, ainda uma criança. Durante muito tempo ninguém suspeitou de que era a responsável pelo desaparecimento de artigos de luxo das casas das meninas de boas famílias a quem dava aulas, mas a partir de determinada altura a Cepa, outra das suas alcunhas, passou a ser “hóspede” regular da Cadeia do Aljube, prisão de mulheres acusadas de delitos comuns até aos anos 1920 e que em 2015 foi convertida no Museu do Aljube — Resistência e Liberdade, em parte para homenagear todos aqueles que, perseguidos pelo Estado Novo, ali foram encarcerados e torturados entre 1928 e 1965.
Luís Augusto Pereira, o Físico, também era um “gatuno fino”, que se apresentava com vários nomes e que sabia “estar à vontade na sociedade, como se nela tivesse nascido e vivido”, lê-se na Galeria... Na realidade, era analfabeto e sê-lo-ia até morrer, o que não o impedia de frequentar os salões por onde passavam “homens distintos e damas ilustres” ou de se fazer passar por médico.
A maioria dos biografados nos vários volumes da Galeria..., escreve Leonor Sá, são responsáveis não por “crimes violentos, graves ou de grande envergadura económica, mas [por] pequenos delitos”. Destacam-se não pelo que fizeram, mas “por não corresponderem — sobretudo pela astúcia e boa aparência — ao modelo estereotipado do criminoso da época”.
É o caso de António Braz Monteiro, o Ladrão Fino, homem que se “impunha pelo porte, pela forma como falava, pela maneira de pensar”, pode ler-se na obra publicada em volumes ainda no século XIX. Braz Monteiro especializou-se em arrombamentos e roubos em casas que sabia estarem vazias a partir do que lia nos jornais. Apanhava o barco pela manhã em Cacilhas, comprava o Diario Illustrado e decidia o alvo do dia a partir da secção que hoje teria, provavelmente, o cabeçalho Life & Style, onde se dava conta dos “ilustres” que se tinham ausentado da capital. Chegado a Lisboa, dirigia-se a um prédio na Rua do Arsenal onde guardava as ferramentas do “ofício” e ia “trabalhar”.
A Galeria... procura justificar a sua actividade criminosa, defende a investigadora, com um impulso que lhe é impossível controlar, mas o seu comportamento sistemático indicia uma premeditação e uma capacidade de organização que nada parece ter que ver com um ímpeto repentino.
Outro dos criminosos cuja aparência iludiu as autoridades foi Narciso Viana, o Bonito ou Bonita, que se apresentava sempre impecavelmente vestido e que tinha cuidado redobrado na maneira como falava e escrevia. Detido múltiplas vezes por haver suspeitas de que roubara uma carteira ou um relógio, acabava quase sempre libertado por falta de provas.
“Este Viana é como aquele americano cuja mugshot se tornou viral [Jeremy Meeks] e que hoje é modelo, acho eu. O seu aspecto era de tal forma dissonante do que fazia nesta época em que a criminologia dava os primeiros passos que as pessoas tinham dificuldade em acreditar que era um ladrão.”
Se é verdade que muitos dos “criminosos célebres” são detidos por pequenos crimes — roubo de galinhas incluído —, também é verdade que a Galeria... dá conta de outros brutais, como o da já referida Matricida — Maria José, 30 anos, vendedora de tapetes que morava perto do Campo de Santa Clara —, condenada à forca por ter matado a mãe, Matilde, espalhando as várias partes do corpo pelo bairro, guardando para o chão da sua cozinha a cabeça; ou o de Maria Constância, que esquartejou o seu filho recém-nascido.
O retrato de Maria Constância nos álbuns F.T.M. mostra-nos uma mulher de aspecto modesto, que terá escondido a sua gravidez ilegítima e que depois optou pelo homicídio, com contornos particularmente cruéis.
Um retrato como “pena perpétua”
Cada um destes retratos, diz Teixeira da Mota, funciona como “uma janela para o passado criminoso do país” e põem-nos a imaginar como seria Portugal no final do século XIX. Estudá-los — e mostrá-los — é, por isso, uma forma de conhecermos melhor essa sociedade em que a noção de propriedade é bem diferente da que temos hoje. “Há muita coisa que estes retratos ainda nos podem dizer”, acredita este advogado, explicando em seguida que só autorizou a divulgação de cerca de um terço das fotografias dos seus álbuns para manter boa parte inédita de forma a que outros investigadores se mostrem interessados em trabalhá-los.
A autora, lembra Teixeira da Mota, vira já “chumbado” um pedido para divulgar sem alterações fotografias semelhantes, com mais de 100 anos, que constam dos arquivos da Polícia Judiciária. A Comissão Nacional de Protecção de Dados autorizou a publicação, desde que se colocasse uma “névoa” sobre os olhos, de modo a que o retratado não fosse identificado, o que levou a que a investigadora desistisse de as usar.
“Isto é o politicamente correcto elevado à doença. O que é que me afecta que um familiar meu, há mais de 100 anos, tenha sido preso por roubar duas galinhas ou uma carteira?” Teixeira da Mota defende que a divulgação destas e de outras fotografias semelhantes deve ser feita em nome do direito à informação. “Nós não vivemos de conceitos, mas de imagens, sentimentos, percepções directas. […] Não concordo com essa ideia de que a fotografia [judiciária] é já um pelourinho, um castigo.”
Leonor Sá é de outra opinião. Estas fotografias, que depois eram afixadas nas portas das esquadras para que o público em geral ficasse a conhecer as caras associadas ao crime, funcionavam como uma “estigmatização para a vida”, já reconhecida e combatida por um documento de 1876 que a autora encontrou na Torre do Tombo. “É o comissário Morais Sarmento que, já naquela altura, percebe que o retrato assim divulgado pode impedir uma pessoa de reconstruir a sua vida depois de reabilitada. Ele proíbe a sua divulgação desta maneira. Diz que o retrato se torna uma ‘pena perpétua e degradante’.”
De facto, muitos dos delinquentes que se viam assim expostos nas portas das esquadras eram presos por roubarem uma manta ou um chapéu-de-chuva. “Muitas vezes fiquei com o coração partido ao ler as suas histórias muito breves. Eram pessoas muitos pobres, muitas roubavam para comer; só dois ou três eram bem-nascidos.”
Entre estes “bem-nascidos” ou com formação académica, conta-se, por exemplo, o professor primário Manuel Joaquim Pinho, anarquista reconhecido, que foi detido por agredir o deputado Manuel Pinheiro Chagas, com quem trocara argumentos nas páginas dos jornais a propósito da formação da Comuna de Paris. Pinheiro Chagas escrevia, entre outras coisas, que para disciplinar uma das principais figuras deste movimento de base operária, a professora e poetisa anarquista Louise Michel, bastava levantar-lhe as saias e dar-lhe uns açoites, evocando assim a violência doméstica como forma de pôr fim às aspirações emancipadoras das mulheres. Manuel Joaquim Pinho não gostou e escreveu um artigo em que expunha a pobreza da argumentação do parlamentar, que mais tarde voltou à carga e lhe exigiu explicações. Farto da imprensa, o professor primário decidiu trocar a caneta pela bengala e dirigiu-se a São Bento, onde aplicou a Pinheiro Chagas um castigo semelhante ao que ele sugerira para a sindicalista francesa, o que lhe valeu 18 meses de prisão e uma multa.
“Não sei se o Manuel Joaquim Pinho era um feminista, mas que é difícil pensar nele como um criminoso, lá isso é”, admite Leonor Sá, para quem há no retrato judiciário um misto de fascínio e repulsa. “Estas fotografias mexem connosco porque lidam com crime e castigo, porque têm uma carga simbólica, social e política fortíssima. Não é por acaso que artistas como [Andy] Warhol, [Marcel] Duchamp ou [Christian] Boltanski se apropriam delas para alguns dos seus trabalhos.”
A retórica do retrato de frente e perfil criada por Bertillon ainda hoje tem um impacto enorme, garante a conservadora do Museu da Polícia Judiciária. Já não estamos à espera, é certo, que a conduta criminosa de alguém possa em boa parte ser explicada pela hereditariedade ou pelos seus traços fisionómicos, mas continuamos a acreditar que um rosto diz muita coisa: “Boltanski tem uma instalação em que usa retratos de agressores e vítimas. Mesmo sem se aperceber, a esmagadora maioria das pessoas tenta descobrir quem é quem só olhando para aquelas caras, o que nos diz que não mudámos assim tanto… Continuamos a achar que é bem possível que os maus tenham mesmo cara de maus.”