O Buçaco que atrai Israel e que se lança à Unesco

De reduto dos frades carmelitas descalços a tesouro da serra, a riqueza da mata do Bussaco tem o costume de cair no esquecimento dos da terra que apenas ali reconhecem “o hotel e uma mata”.

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Paulo Pimenta

As glicínias que cobrem a pérgula já não estão lilases, mas a vegetação em volta ergue-se verde e imponente diante aos nossos olhos, no meio da neblina da manhã, que torna a mata tanto misteriosa quanto bucólica. Os troncos, as folhas, os galhos que se emaranham uns nos outros, os musgos verdes agarrados a muros e pedras. A mata do Bussaco, optando pela grafia antiga, ainda é para muitos um segredo com 400 anos perdido na serra, não fosse a vontade dos carmelitas descalços, vindos de Espanha, ali criarem um deserto, um convento, num sítio virgem, que não tivesse sido ainda mexido pela mão humana.

A ideia primeira destes religiosos seria refugiarem-se em Sintra e criarem um espaço de reclusão. Mas o mar poderia ser inimigo e o clima poderia não ser favorável ao cultivo de algumas espécies. A natureza, a ecologia eram já mantras de vida para estes carmelitas.

Era pelas portas de Coimbra – grandes portões voltados para a cidade da sabedoria – a entrada principal na mata na época. A partir dali, eram cerca de 100 hectares de um espaço de clausura, que, “teoricamente”, só homens poderiam pisar. Conta-se que quando as senhoras entravam no espaço da mata, os frades carmelitas revolviam a terra que elas tinham pisado.

É Gilberto Fernandes, o teólogo de formação que serve de nosso guia, quem nos conta esta estória e que nos alerta para as duas bulas papais do século XVII que estão gravadas nessa entrada. Uma delas, do Papa Gregório XV, proíbe justamente a entrada de mulheres nos conventos carmelitas, por isso também o de Santa Cruz do Bussaco ali erguido no lugar que é hoje ocupado pelo Bussaco Palace Hotel. O outro documento revela-se inédito e pioneiro: proíbe a destruição de árvores e a apanha de madeira, sendo reconhecido como o primeiro documento oficial do Vaticano de protecção e conservação da natureza. “É uma questão tão antiga e tão actual agora”, nota Gilberto.

O cedro que mente duas vezes

A biodiversidade é um ícone da mata, reconhecem os seus defensores. Na mata, há hoje espécies de todos os continentes. No passeio pelos seus 105 hectares passamos por vários micro-climas que possibilitam que estas 250 espécies sobrevivam, algumas por centenas de anos.

Como o cedro do Bussaco, “que mente duas vezes”, diz Gilberto Fernandes, enquanto nos guia por 400 anos de história. É uma árvore de 1644, segundo indica a placa que a identifica, já gasta pelo tempo, e terá sido a primeira plantada pelos carmelitas.

O seu nome científico é Cupressus lusitanica. Ou seja, não é um cedro (primeiro equívoco), nem é do Buçaco (segunda mentira). É, na verdade, um cipreste oriundo do México que foi depois para a Goa e daí chegou a Portugal.

“[Os carmelitas] não são descalços porque andassem de pés no chão, mas sim porque são desprovidos de bens”, repararia Gilberto logo no início da visita, enquanto nos mostrava o que resta do Convento de Santa Cruz, ali erguido com recursos aos materiais que a terra dava e que utilizaram para construi dezenas construir algumas das construções que ainda hoje ali se mantêm. A estrutura é adornada com mosaico com pedra que, sendo uma arte austera, não deixa de ser arte. “A ideia da austeridade, da simplicidade estava sempre presente”, nota o guia. Prova disso são os interiores forrados a cortiça, que são da época, garante Gilberto, e uma espécie de pedra escura, com aparência de vulcânica, que aparece no mosaico que cobre as paredes.

Que, afinal, não é pedra, mas sim escória ferruginosa em grande quantidade. “Ainda permanece como um mistério saber como chegou aqui a escória”, diz o teólogo, já que não havia ali por perto que produzisse tal material. 

“Para o povo? Então o povo era rico”

Com a expulsão das ordens religiosas de Portugal, o edifício cai no abandono, sobretudo entre 1834 e 1888. E seria precisamente em 1888 que se iniciaria a construção daquele que se tornaria o Bussaco Palace Hotel, antes pensado para ser casa real.

“Vamos tirar das nossas cabeças que isto foi Palácio Real. Nunca foi”, diz Gilberto. Foi riscado por Luigi Manini para ser palácio real, mas dada a conjuntura do país, era um investimento desproporcional. O projecto acabou por ficar na gaveta e só mais tarde, em 1888, o "ministro das obras públicas" da altura, Emídio Navarro, que tinha interesses na vila termal do Luso, pô-lo em marcha para o transformar num “hotel para o povo”. "Para o povo? Então o povo era rico", há-de interromper um dos visitantes.

E os números não enganam: o orçamento de Estado em 1888 era de 120 contos. Oficialmente, a construção do palácio terá custado 97 contos. “É, de facto, uma obra colossal”, resume Gilberto.

De hotel do povo, tem muito pouco. É uma obra faustosa, com uma base neo-manuelina, com elementos encordoados, colunas, estes motivos alusivos à expansão portuguesa. Mas à medida que os nossos olhos sobem, torna-se mais simples. Isto porque, explica Gilberto, arquitectos portugueses como Norte Júnior também participam no projecto. A família real apenas terá passado ali uma noite.

Do Luso a Israel e à Unesco

Ainda há poucos que reconhecem o património florestal, histórico, cultural, religioso, e militar da Mata do Buçaco. Aos da terra, a própria mata passa despercebida. “Se chegar à Mealhada e perguntar o que é o Buçaco, as pessoas não sabem. São capazes de responder ‘é uma mata e tem lá um hotel’”, considera Gilberto.

Do que resta do convento, que foi em grande parte demolido para a construção do palácio, parte o trilho da Via-Sacra, construída em 1648 e feita à escala de Jerusalém. Segundo explica Gilberto, a Via-Sacra é uma das principais razões pelas quais os turistas israelitas aparecem em terceiro lugar, depois dos portugueses e dos espanhóis.

“Eles [israelitas] dizem-nos que o país está muito bem referenciado em Israel, precisamente por causa da Via-Sacra, e que é extremamente seguro”, conta. 

Naqueles 100 hectares há cerca de 140 edificações. Ou seja, áreas que foram intervencionadas, desde jardins a construções. Muitas delas, a precisar de ser recuperadas.

Mas para isso é preciso dinheiro. Que até Março a Fundação Mata do Bussaco (FMB), constituída há nove anos para fazer face ao abandono que existia nesta mata, não recebia. Só este ano, a mata foi considerada monumento nacional, passando assim a poder beneficiar de ajudas públicas e a concorrer a fundos comunitários.

“Até ao dia 23 de Março, a administração central dava zero à FMB”, critica António Gravato, presidente da fundação, reconhecendo que as edificações da mata estão a precisar de intensas obras de recuperação. Sobretudo depois de em 2013, a mata não ter escapado à fúria do ciclone Gong que varreu aquela zona, deitando abaixo, estima, cerca de 10 mil árvores de grande e de médio porte.

Para já, estão a avançar as obras de recuperação do Convento de Santa Cruz e da Via-Sacra, que estão orçadas em cerca de 1,2 milhões de euros.

Desde o ano passado, a Fundação Mata do Bussaco e a Câmara Municipal da Mealhada estão a trabalhar na candidatura da Mata Nacional do Bussaco a Património Mundial da UNESCO. O objectivo, não esconde António Gravato, é chamar mais pessoas. A mata recebe anualmente 275 mil visitantes - muitos deles são visitas escolares –, o que faz deste local o segundo mais procurado da região centro, só suplantado pela Universidade de Coimbra.

“Se o Buçaco chega quase ao outro lado do mundo, devia chegar mais depressa a Portugal”, desafia Gilberto, lançando também o convite aos que queiram perder-se por mais de 100 hectares de história e natureza.

Info: Para entrar na mata, os veículos ligeiros pagam cinco euros. As visitas guiadas ao convento, jardins e mata variam entre os 5 e os 7 euros por pessoa.

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