A destruição da América por Donald Trump

Não se separam crianças de pais em situações de absoluta fragilidade para ambos. (...) Não se sacrificam crianças para dar exemplos à humanidade.

Eis a justificação jurídica boazinha para as autoridades americanas separarem pais e filhos na fronteira com o México: para travar a imigração ilegal é necessário processar criminalmente os adultos que tentam entrar nos Estados Unidos; as crianças imigrantes não podem, segunda a lei americana, ser detidas e apresentadas a um tribunal; logo, pais e filhos têm de ser separados.

Eis a justificação política boazinha para separar pais e filhos na fronteira com o México: os imigrantes da América Central que querem entrar ilegalmente nos Estados Unidos são obrigados a enfrentar um percurso violentíssimo até a fronteira, colocando-se nas mãos de cartéis que os exploram, maltratam e, muitas vezes, violam; as crianças são usadas nesse percurso como escudo protector das famílias junto das autoridades; o circuito tem de ser estancado e destruído; separar pais e filhos na fronteira é um mal menor e um forte incentivo para que outras famílias deixem de arriscar tanto na viagem.

Há ainda outras justificações boazinhas, como a bíblica, segundo Jeff Sessions: “Citaria o apóstolo Paulo e o seu mandato claro e sábio, em Romanos 13, que diz para obedecer às leis do Governo porque Deus as criou com o propósito da ordem.” Vamos passar por cima da péssima interpretação bíblica de Sessions e centrarmo-nos no ponto essencial, que é este: para qualquer barbaridade que seja cometida no mundo é possível encontrar alguém a defendê-la com uma argumentação estruturada. Se até para o Holocausto e para o Grande Salto em Frente foi possível alinhavar discursos supostamente racionais, com muito maior facilidade se encontra uma justificação boazinha para separar pais e filhos numa fronteira.

O problema está naquilo a que habitualmente se chama “linha vermelha” – a consciência de que há coisas que não se fazem, por mais magníficos que sejam os argumentos para as fazer. Essas linhas vermelhas têm a ver com uma herança humanista partilhada pelas pessoas de bem, que considera serem tendencialmente invioláveis determinados valores – valores como o da família, por exemplo, quando estão envolvidas crianças. Não se separam crianças de pais em situações de absoluta fragilidade para ambos, porque naquele momento aquelas crianças e aqueles pais são mais importantes do que o desmantelamento de uma rede de tráfico humano. Não se sacrificam crianças para dar exemplos à humanidade.

Esses são os momentos em que as lógicas jurídica ou política devem ser suspensas para responder a pessoas muito concretas que estão diante de nós em profundo sofrimento. A América costumava acreditar nisto. Aliás, a América já fez muitos filmes sobre isso – actos de heroísmo onde a importância do indivíduo se sobrepõe à importância de cartéis, governos, conspirações e toda a espécie de declinações geopolíticas. Mais: se o senhor Sessions soubesse realmente ler a Bíblia saberia que os Evangelhos não são outra coisa senão uma radical valorização de cada indivíduo em si mesmo, tido como absolutamente sagrado aos olhos de Deus (Lucas 12: “até os fios de cabelo da vossa cabeça estão todos contados”).

Portanto, interessam-me pouco as pessoas que, diante de pais e filhos separados por uma decisão bárbara, e milhares de crianças abandonadas em campos a que só por pudor não chamam prisões, aparecem por aí a alinhavar magníficos argumentos para justificar o injustificável. A América que eu conheço é muito melhor do que isto. Seria bom que Donald Trump não destruísse essa América.

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