Número de instituições no terreno dificulta seguir rasto dos 16 milhões de donativos

Para além do Fundo Revita, criado pelo Estado, houve várias instituições, mais ou menos articuladas, a gerir a aplicação dos donativos no terreno. No terreno há relatos de abusos e queixas de a reconstrução ter sido feita "à sorte"

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No dia fatídico, aquele em que a aldeia ficou virada do avesso, o céu ficou incandescente e a temperatura ficou insuportável, o colchão da cama de Fátima Sousa, de 55 anos, também ardeu. Apesar dos estragos, a casa ficou habitável, e foi por lá que ela continuou até que teve de pedir tecto emprestado. Fátima vive em Vila Facaia, concelho de Pedrógão Grande, há 27 anos. E vive há pouco mais de dois meses na casa do padre da freguesia, enquanto uma empresa de construção civil lhe faz obras na casa. “Apareceu-me o engenheiro Bruno, [funcionários da Câmara de Pedrógão Grande] que me disse que o Benfica me queria pagar a casa. Eu nem era do Benfica, mas agora passei a ser”, confessa. Fátima conta que escolheram os materiais, as cores, ela só teve de dizer qual a cama que preferia. “O Ikea trouxe aí de tudo. Não falta nada”, remata, para logo retroceder: “falta saúde”, sobretudo para o marido, que está internado desde Fevereiro por causa de um aneurisma. 

A casa estará pronta dentro de um mês, e na vizinhança, que enche a boca para falar dos que tiveram direito a casa reconstruída sem que lá morasse ninguém, e dos que não conseguem reconstruir um barracão que lhes serve de sustento, asseguram que Fátima Ferreira é das que merece “esta esmola”. “Não somos mal agradecidos. Mas foi feito tudo à sorte”, atalha Deonilde. 

Depois da tragédia de 17 de Junho a solidariedade foi quase automática, e traduziu-se numa avultada soma de donativos. A Fundação do Benfica é apenas uma das muitas centenas de beneméritos que de forma pública ou anónima se quiseram associar na reconstrução do território. Nas contas oficiais divulgadas pelo Ministerio do Planeamento, que é quem está a coordenar toda esta gigantesca operação de reconstrução, a Fundação Benfica vai gastar pouco mais de 32 mil euros a recuperar aquela casa. É uma gota de água nos mais de 16 milhões de euros que totalizam a quantidade dos donativos que foram enviados para a região. 

Andar por lá, por estes dias, é ouvir muitos relatos de burlas e de abusos, é ouvir queixas do que dizem que não fazem e do que deixaram por fazer. Fala-se à boca cheia. “Eu sempre que ouço alguma coisa, faço chegar a informação a quem de direito”, garante Teresa Morais, deputada do PSD eleita pelo círculo de Leiria, esperando que alguém investigue, fiscalize. Desconhecem-se se há resultados destas queixas. Mas andar por lá  é, também, ouvir relatos de resignação. E de agradecimento. 

Rio Fiolhais, presidente do Instituto da Segurança Social, a entidade  que assumiu a liderança no conselho de gestão do Fundo Revita, o organismo criado pelo governo para fazer a gestão dos donativos, disse ao PÚBLICO que os desafios foram elevados, sobretudo pela exigência de “articulação com os doadores, os poderes públicos e as populações afectadas”. 

A  tarefa era complexa. Do relatório do Governo publicado um mês depois do incêndio, 491 casas foram dadas como perdidas, sendo 169 de primeira habitação, 205 de segunda habitação, 117 em estado devoluto; e empresas envolvidas foram quase 50, em Pedrógão, Figueiró dos Vinhos, Castanheira de Pêra e Góis e 374 postos de trabalho afectados. Ao longo dos meses, este inventário foi sendo dinâmico, e as casas a intervir, identificadas como primeira habitação e susceptíveis de integrar os apoios do Revita também foram sendo alteradas. O universo de habitações permanentes, intervencionadas s últimos números apontam para 264 casas, estando concluída a reconstrução em 60% dos casos. Há ainda mais de uma centena de casas em obra, sendo que o investimento em todas elas ascende aos dez milhões de euros.

Os donativos recebidos ultrapassam largamente esse valor. Aliás, a gestão da quantidade de donativos que surgiu, provenientes dos mais diversos quadrantes, foi ela própria um desafio. 

Até ao final de Março de 2018 houve 60 entidades que formalizaram a adesão ao fundo REVITA - 40 com donativos em dinheiro (4,3 milhões de euros), oito em espécie (como a Ikea, a Bosch, a Molaflex ou a Samsung ) e quatro em prestações de serviços (Ordem dos Arquitectos, ordem dos Engenheiros, Mota Engil e Clube Português a Família). 

No final, porém, o Revita não ficou a fazer a gestão da principal fatia dos donativos. A Fundação Calouste Gulbenkian, que doou meio milhão de euros, ficou responsável pela aplicação de quase tanto dinheiro como o fundo público, uma vez que geriu a aplicação de mais de quatro milhões de euros. Uma curiosidade é que a principal verba foi entregue pelas linhas da Caixa Geral de Depósitos (2,7 milhões de euros). A União das Misericórdias Portuguesas (UMP) ficou com a gestão de 2,1 milhões de euros, provenientes de donativos das misericórdias, de várias empresas como a MEO e a NOS, e até do BCE. A Cáritas ficou a gerir também 2,1 milhões de euros, sendo que 58% desta verba foi recolhido nos ofertórios das missas. Mas há mais donativos a contabilizar, como aquele que a Fundação Aga Khan geriu directamente, através da atribuição de bolsas de estudo a jovens da região, no valor de 500 mil euros. 

Os padrões de transparência invocados por Rui Fiolhais são mensuráveis nos relatórios trimestrais que todos estas entidades fazem - e nos quais revelam onde vão aplicando o dinheiro. E é neles que se percebe que o Fundo governamental assumiu a responsabilidade da reconstrução de apenas 36% das casas afectadas. A Gulbenkian também avançou na reposição de perdas das actividades de subsistência, apoiando 1396 agricultores e 300 apicultores e reforçando a capacidade de respostas das instituições locais apoiando 39 instituições, das quais 26 unidades de saúde local e duas unidades hospitalares. De acordo com a Fundação, o último donativo para esta causa chegou em Abril deste ano e a quase totalidade das verbas do Fundo (96,5%) já estão comprometidas. A União das Misericórdias tem 83% do seu fundo atribuído. A própria Santa Casa da Misericórdia de Pedrógão, que também recolheu donativos, ainda não gastou um cêntimo - o presidente disse publicamente que só o fará quando já nao houver dinheiro no Revita.  

Quem se manteve sempre à margem deste processo, por opção, foi a Associação das Vítimas dos Incêndios de Pedrógão Grande (APVIG). Nádia Piazza diz que não houve acompanhamento na reconstrução, nem quis receber donativos - “quando apareciam aqui, encaminhava para a Ceruiz Vermelha", explica. Não foi esse o nosso objectivo, quando nos constituímos”, sublinha, dizendo mobilizar todas as energias “para aprender a não depender do Estado”. “O Estado falhou. Há um ano falhou tudo”, recorda a presidente da Associação. “O nosso objectivo é a responsabilização, procurar a justiça para que não volte a acontecer”, insiste, acrescentando que tal significa combater todos os problemas da interioridade.  

A solução inédita de montar um fundo social para a reconstrução implicou, admite Rui Fiolhais, alguns dias em que a capacidade das equipas “foi levada ao limite”. “Foi um processo humanamente exigente mas que trouxe ao de cima o melhor que há em nós”, sublinhou. Fátima Sousa, a um mês de sair da casa do padre para entrar naquela que ainda está a pagar ao banco, e que “vai ficar melhor do que alguma vez esteve”, também acha que sim. 

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