Alqueva vai ter de libertar água para Espanha

Há 23 anos que Espanha tenta um acordo com Portugal para o regime de caudais do Guadiana. A agricultura intensiva do Alentejo consome menos água do que o previsto mas a sobrante está a ser aproveitada por novo regadio. O ministro do Ambiente prometeu que o país cumprirá compromissos “este ano”.

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Miguel Manso

As autoridades espanholas reclamam um maior volume de água libertado a partir de Alqueva para minorar os problemas ambientais no troço internacional do Guadiana e no estuário do rio, com o argumento de que Portugal tem água em excesso para as suas necessidades hídricas.

Vinte anos depois da Convenção de Albufeira, o tema volta ao debate. Nas suas mais recentes intervenções o ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, garantiu, por um lado, que Espanha “cumpriu, e está a cumprir, a Convenção de Albufeira”, embora com “pequeníssimas excepções”, e, por outro, que “é obrigação de Portugal honrar o que falta relativamente [à Convenção de Albufeira] este ano”.

O regime de caudais integrais do Guadiana tem alimentado a controvérsia entre os dois países ibéricos, desde que Portugal anunciou a retoma do Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva (EFMA) em meados dos anos 90 do século passado. Nem mesmo o acordo assinado por Portugal e Espanha na Cimeira de Albufeira, em 30 de Novembro de 1998, para definir as normas de protecção das águas dos rios comuns (Minho, Douro, Tejo e Guadiana), superou o contencioso. Apenas o contornou com a seguinte indicação: “O regime de caudais integrais anuais não se aplica (no Guadiana) até que se inicie o enchimento da albufeira do Alqueva” que teve lugar a 8 de Março de 2002.

As comportas da barragem do Alqueva foram encerradas, naquele ano, mas Portugal persistiu no incumprimento da Convenção de Albufeira, ao não adequar o regime de caudais do Guadiana ao que acontece em todos os rios partilhados.

Posteriormente, no decurso da II Conferência das Partes, realizada em Madrid em 2008, foram acordados para o Guadiana para além do regime de caudais anuais e trimestrais, um caudal diário mínimo de 2 metros cúbicos por segundo (m3/s) a respeitar durante todo o ano no açude de Badajoz.

No entanto, na estação hidrométrica de Pomarão (Mértola) manteve-se apenas o registo do caudal médio diário mínimo de 2 m3/s, que as autoridades espanholas contestam. Reclamam “um regime de caudais semelhante ao existente em Badajoz”, lê-se na acta da 17.ª reunião da Comissão para a Aplicação e o Desenvolvimento da Convenção (CADC), realizada em 2013. Portugal teria de aplicar, no Pomarão, para além do caudal médio diário mínimo, os caudais anuais e trimestrais e ainda um regime para situações excepcionais, em caso de seca ou de escassez de água. Esta disposição significaria escoar para o troço internacional do rio (entre Pomarão e Vila Real de Santo António) um caudal equivalente ao que recebe de Espanha (entre 500 a 600 milhões de m3 anuais).
A delegação portuguesa, presente na reunião, alegou que um tal regime “colocaria em causa o enchimento da albufeira” e “os objectivos do EFMA, a médio e longo prazo”, nas suas componentes de abastecimento público, hidroagrícola e hidroeléctrica. Portugal garantiu “a rentabilização plena dos recursos hídricos que lhe estão atribuídos”.

O cepticismo de Espanha

Acontece que Espanha encara com cepticismo a capacidade de Portugal poder consumir os caudais debitados a partir do açude de Badajoz para a albufeira do Alqueva e tem reclamado o acesso à água a partir da bacia do Guadiana alegando a existência de “excesso de caudais” em território nacional.

As 41 concessões identificadas e autorizadas, até 2012, representam um volume de água superior a 42 milhões de metros cúbicos/ano. Para além deste caudal, a Agência Andaluza de Água solicitou em 2006 à CADC uma autorização de bombagem a partir da estação de Boca Chança, próximo de Huelva, para o acesso a 35 milhões de metros cúbicos, frisando que em certos períodos o volume necessário possa ascender aos 80 metros cúbicos/ano. A respectiva autorização foi protelada durante anos, pelas autoridades portuguesas, alegando a necessidade de aguardar pelos estudos sobre as necessidades de água no Baixo Guadiana.

O PÚBLICO solicitou à Agência Portuguesa do Ambiente que confirmasse se a bombagem está autorizada e qual o volume desviado para Boca Chança, assim como a actualização do número de captações feitas a partir da albufeira do Alqueva, em território espanhol, mas esta entidade não respondeu às questões colocadas.

Na verdade, os 600 milhões de metros cúbicos debitados anualmente para Alqueva, a partir do açude de Badajoz, nunca foram integralmente utilizados no regadio. Em 2016, a EDIA disponibilizou 237 milhões de metros cúbicos para irrigar 65 mil hectares. Estes dados comprovam que o volume de água vindo de Espanha excede, em muito, as necessidades hídricas em Alqueva.

Necessidades sobrestimadas

Um estudo efectuado no início do século pelo Centro Operativo de Tecnologias de Regadio (COTR) conclui que o “dimensionamento das infra-estruturas do EFMA baseiam-se em valores sobrestimados, em cerca de 35 %, das necessidades hídricas úteis e totais”. O documento admitia que as águas sobrantes poderiam ser disponibilizadas para “beneficiar áreas adjacentes ao actual regadio do Alqueva” opção que já está em curso com um acréscimo de cerca de 50 mil hectares aos 120 mil que compreendem a primeira fase do empreendimento hidroagrícola. Foi a solução encontrada pelo Governo para não ver reduzidos débitos enviados por Espanha.

Pedro Salema, presidente do conselho de administração da EDIA, reconhece que o sistema de rega idealizado há duas décadas, “já não se adequa” às necessidades de hoje. Previa a distribuição de 6000 metros cúbicos por hectare mas, com os novos sistemas rega (gota-a-gota) e o ascenso do olival e amendoal intensivos e superintensivo, que ocupavam em 2017 mais de dois terços da área regada no Alqueva, o consumo de água baixa para valores inferiores a 2000 metros cúbicos por hectare. “Chegámos à conclusão que é possível regar mais quase 50 mil hectares com o volume concessionado anualmente para regadio de 590 hectómetros cúbicos”, diz.

Decorridos que estão 15 anos da data do encerramento das comportas do Alqueva, Portugal “vai cumprir, em 2018,” a Convenção de Albufeira. A garantia foi dada no Porto pelo ministro do Ambiente João Matos Fernandes, onde reuniu, em Novembro, com a sua homóloga espanhola, Isabel Tejerina. A declaração suscitou de imediato reparos de quase todos os partidos políticos. Surgia num contexto condicionado pela prolongada seca severa e extrema que assolava a maior parte do território nacional, há quase três anos, e pela substancial redução dos caudais nos rios Douro, Tejo e Guadiana.

O PCP reforçou o caudal das críticas apresentando na Assembleia da República, no fim de Novembro, um projecto de resolução onde manifestava as suas “inquietações”. Acusou os sucessivos governos de se terem colocado na discussão com Espanha “numa posição de fragilidade e de subalternização”. Afirmou não ser uma “coincidência” que o regime de caudais seja “o mais conveniente” à exploração das barragens concessionadas à produção hidroeléctrica, “mesmo que isso coloque em causa outros usos, incluindo o ecológico”. Para contrariar este cenário, propunha a abertura de um processo de revisão da Convenção de Albufeira.

O ministro do Ambiente garantiu que Espanha “cumpriu, e está a cumprir, a Convenção de Albufeira” embora com “pequeníssimas excepções”. O Alqueva vai ter de libertar água. Só não se sabe qual será o novo regime de caudais para o Guadiana. O PÚBLICO questionou o ministro, mas não obteve resposta.

A discussão da revisão da convenção prossegue neste momento num grupo de trabalho da Comissão do Ambiente da Assembleia da República. Na semana passada, a Federação Nacional de Regantes emitiu um comunicado sobre uma reunião tida com os deputados, no dia 11, onde manifestou a preocupação dos regantes com a situação de seca declarada por Espanha, que lhe “permitiu decretar um regime de excepção a esta convenção”, não libertando para Portugal os caudais acordados. E as autoridades espanholas já admitiram “reduzir os caudais dos rios sempre que surjam situações de seca prolongada”, alertou ainda a federação.

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