Descobrir o Porto sem norte
A propósito do Festival P, que decorre este sábado no Hard Club, e dos 28 anos que o PÚBLICO completa na segunda-feira, fomos até ao Porto e, durante três dias, percorremos a cidade sem plano de ataque. Que Porto vê quem chega sem guia na mão? Sem Clérigos ou Lello, o nosso Porto tornou-se uma mescla interessante: moderno, mas também castiço; autêntico, mas que também sabe mostrar tiques cosmopolitas. Boa notícia: ainda há lugares de vistas soberbas que escapam ao turismo.
Subimos a Rua do Bonfim à procura do número 356. Encontramos a porta entreaberta, por isso esgueiramo-nos para o interior, ainda tentando perceber se estamos no sítio certo. Não se ouve nem se vê vivalma. Ao fundo, a saída para o pátio está bloqueada por andaimes. Subimos as escadas de madeira, coloridas de dizeres em inglês. “We are real.” “We make mistakes.” “We love.” O ar familiar das divisões não afasta a sensação de estarmos a entrar em casa alheia. No cimo das escadas, uma rapariga aponta-nos para uma porta encerrada. É dali que chegam as vozes sussurradas que procuramos.
No dia anterior, tinham-nos sugerido visitar a Casa Bô, um projecto de intervenção social, cultural, artística e ambiental assente na vivência comunitária, instalado aqui desde 2015. Reparámos no Facebook que tinham um evento agendado para esta noite e resolvemos vir espreitar. Abrimos a porta e as vozes cessam por momentos. Chegamos atrasados e a sessão do Pensar em Voz Alta já começou. Os candeeiros estão a meia-luz e quase 20 pessoas, a maioria jovens, sentam-se em sofás, puffs e almofadas contra as paredes da sala. A iniciativa é organizada por Sandra Esteves, que ocupa o lugar central, em frente a um pequeno palco com cortinas vermelhas. O objectivo é dar protagonismo ao pensamento e à discussão sem pressas.
Em cada sessão, o grupo tem de propor questões filosóficas e depois debater sobre a pergunta seleccionada pela maioria. Chegamos em plena votação. A questão escolhida: precisamos de ter consciência de si de nós próprios para termos consciência de si dos outros? Desta vez, o debate segue por caminhos mais académicos e abstractos, são poucos os participantes que pedem a palavra. Mas por aqui também se discutem relações, o ser ou assuntos ligados à actualidade. “Não precisamos de saber nada de filosofia para cá vir”, garante Sandra. O que importa é entrar de espírito aberto e disponível para pensar com tempo.
Esta é apenas uma das diversas actividades organizadas na Casa Bô. Exposições, concertos, aulas de dança, sessões de desenvolvimento pessoal, jantares vegetarianos ou oficinas para pais e filhos são apenas algumas das propostas. “Queremos dar espaço a quem nos chega”, conta Ângelo Lopes, principal promotor do projecto. A ideia de criarem um “espaço de partilha”, assente em “relações humanas” e dedicado às artes e à cultura surgiu há oito anos. Na base do conceito esteve sempre a intenção de reabilitar uma casa no Porto.
Em 2015, chegaram a acordo com o proprietário do edifício que aloja a Casa Bô: durante dez anos, a renda mantém-se baixa mas eles tratam da reabilitação do prédio. Daí os andaimes e as obras no rés-do-chão, que preparam para abrir a novas actividades. No entanto, “mais do que promover a arte, a cultura, a solidariedade social ou a preocupação com o meio ambiente”, o colectivo procura trazer para o dia-a-dia “valores que vão estando menos presentes na sociedade”, como a partilha, o respeito, o amor ou a paz. E querem fazê-lo em conjunto com a comunidade e “todos aqueles que querem seguir o mesmo caminho”. Sempre na base do voluntariado ou de donativos conscientes.
Se começamos por aqui, pela Casa Bô, é porque durante três dias andamos a explorar o Porto à deriva das sugestões de quem cá vive e daquilo que vamos encontrando pelo caminho. Sem planos ou destino definido. E procurando fugir aos lugares mais turísticos. Não subimos à Torre dos Clérigos nem descemos à Ribeira. Não entramos na livraria Lello, n’A Gazela ou nos jardins do Palácio de Cristal. Ainda é possível chegarmos como turistas à cidade e encontrar um Porto (relativamente) desconhecido?
De uma rua esquecida, faz-se arte urbana
Chegamos de comboio à estação de São Bento, vindos de Campanhã. Ainda nem saímos da carruagem quando avistamos o hostel onde vamos dormir nas próximas duas noites. O The Passenger abriu em Julho do ano passado, transformando os antigos escritório da CP em camaratas (sete) e quartos privados (nove e uma suíte, a única com casa de banho privativa). Onde em tempos foi uma loja de bordados é agora a recepção, com lounge, mezanine e um bar aberto ao público com vista para a estação.
É Marta quem nos recebe para o check-in e, embora não seja natural do Porto, é a primeira a traçar-nos sugestões num mapa. Entre preferidos e inevitáveis, deixa uma última dica. “Se sair agora aqui à direita e subir pelas escadas ao fundo, tem uma perspectiva diferente da estação e da cidade.” Há que subir pela Rua da Madeira, viela entalada entre a histórica estação, classificada como Património Mundial pela UNESCO, e a Rua de 31 de Janeiro. Não podia ser mais central e, no entanto, os braços do turismo parecem tê-la esquecido.
Na travessia, quase não dávamos pelo BECUH, acrónimo para Badass Experiences by Creatives from Urban Habitat, um projecto experimental que procura dinamizar actividades ligadas à arte urbana contemporânea. Não há qualquer letreiro junto ao número 98 da Rua da Madeira e o pequeno portão parece camuflado entre as camadas de grafitti e tags que sobem até à Praça da Batalha.
Há três anos que Filipe Granja (mynameisnotSEM), Tiago Carvalho Gomes (GODMESS) e Bebiana Branco utilizam a sala maior como estúdio de trabalho. Mas aquele recanto de paredes brancas, que foi casa de habitação e hoje nos parece minúsculo, continuava sem qualquer proveito. “Começámos a pensar que podíamos fazer coisas ali, até porque na realidade não há muito a acontecer no Porto no âmbito da arte urbana e mesmo nós muitas vezes não temos onde expor”, conta Filipe Granja.
No início de 2017, nascia o BECUH. Durante o último fim-de-semana de cada mês, as portas abrem-se ao público para mostrar a obra do artista ou colectivo convidado a expor no espaço de 14 metros quadrados. “Optámos pelo formato flash porque o objectivo não é vender, então não podíamos ter sempre a porta aberta porque temos os nossos trabalhos.” Para já, o projecto é pensado sobretudo para quem faz ou gosta especialmente de arte urbana. “Se calhar numa primeira fase não nos interessa chegar ao público geral, mas produzir e fazer acontecer coisas, que é disso que há falta”, assume.
No entanto, Filipe não sabe por mais quanto tempo é que o BECUH vai estar aberto ou, pelo menos, nesta localização. “Temos contrato até ao final do ano e depois logo se vê.” O artista acha “saudável” que a cidade se prepare para receber os turistas que chegam às centenas na Baixa do Porto. Têm de existir locais a visitar, onde comer e dormir. Mas acredita que “não tem havido uma grande regulamentação desse crescimento em flecha”. “Se calhar estamos a inventar um Porto que não é bem o Porto, mas que é qualquer coisa que dá para vender ali ao turista”, critica. “Acho saudável que a cidade evolua. Só que só vão ficar alguns”, diz, com uma ponta de ironia.
Umas casas abaixo, um painel de azulejos criado por Miguel Januário levanta a mesma questão: “Quem és Porto?” Entre desenhos e dizeres típicos da cidade, uma espécie de anúncio publicitário deixa explícita a crítica: “Antiga, mui gourmet, sem plano social e turística cidade do Porto”. Ao longo da rua, quase não há paredes por “grafitar”. “A maior parte das intervenções são de artistas estrangeiros. Pessoal que está de férias, vem aqui ver os comboios às escadas e pinta umas coisas”, conta Filipe, demarcando o BECUH da arte urbana para lá do portão. “Ainda na semana passada pintei o muro de amarelo e já tinha um gráfico que parecia uns caracteres chineses. Ontem já tinha aí outro.”
Para cima e para baixo, um sobe e desce de turistas, câmaras fotográficas e malas de rodas. Atravessaremos a Rua da Madeira várias vezes ao longo da estadia e o movimento parece nunca cessar por completo, indiferente a horas ou meteorologias. Do cimo da escadaria, avistamos as filas de comboios lá em baixo, aguardando o sinal de partida. Ao fundo, a Torre dos Clérigos, omnipresente entre a neblina e o casario do centro.
Abortar o plano, encontrar novos planos
Da redacção da Fugas no Porto tinha-nos chegado apenas uma sugestão para ponto de partida: explorar a zona da cidade que se estende até à estação de caminhos-de-ferro de Campanhã. Na comparação possível, diríamos que está para o Porto como Marvila para Lisboa: zona residencial com passado industrial, de traçado urbanístico desordenado, durante anos esquecida pelo resto da cidade, mas que começa agora a ser descoberta por artistas e novos projectos de restauração, atraídos pelas rendas que ainda não chegaram aos valores proibitivos da Baixa. É um lugar a renascer. E um refúgio para quem quer despistar os turistas.
É nessa direcção que tentamos seguir, mas quis o destino que o dia fosse de dilúvio no Porto. “Está um dia do piorio”, reclama um homem ao passar na rua. O aguaceiro parece piorar a cada passo e o vento entrava o uso eficiente de qualquer guarda-chuva. Envergonhados nos confessamos: não fomos além da Praça dos Poveiros. Abort mission.
Ao fundo do largo, chama-nos à atenção o letreiro de um café orgânico e é ali que procuramos refúgio. Já o cappuccino nos aquece o espírito quando conhecemos a responsável pelo espaço. “Tudo o que confeccionamos é feito com produtos biológicos: o açúcar, a farinha, o mel, a granola, os legumes, a fruta”, enumera Dalila Sabino. O Óbio abriu em Agosto do ano passado para colmatar uma lacuna que a proprietária sentia existir na cidade. “Há mercearias e supermercados onde se vendem produtos biológicos, mas não conhecia muitos sítios onde se pudesse fazer uma refeição.”
Depois de uma carreira em caracterização, Dalila quis mudar de área. “Tenho três miúdos e precisava de ter uma vida mais calma em termos de horários”, conta. Por isso, a carta do Óbio aposta sobretudo no pequeno-almoço e no brunch. Na pequena mercearia, com porta para a Rua de Santo Ildefonso, Dalila vende muitos dos ingredientes utilizados na ementa, quase todos de produtores portugueses. “O objectivo também é dar a conhecer o que é comida biológica, porque ainda há quem pense que tem de ser vegano ou vegetariano.”
Durante muitos anos, este estreito espaço foi loja de um artesão de peles e poeta. “Fazia sapatos para o rei de Espanha”, conta Dalila. Nos últimos tempos tinha sido uma ourivesaria. O bairro andava estagnado, vibravam apenas os clássicos de sempre, como a Casa Guedes ou o Venham Mais Cinco. Mas recentemente a zona entrou em ebulição. “Nesta rua está tudo em obras, para alojamento local e restauração.” Não muito longe, abriram espaços como o Combi, a Letraria, o Euskalduna ou o Restaurante Pedro Limão.
Para Dalila, a mudança é positiva. “Estava muito concentrado num só sítio e agora acho que a Baixa do Porto está um bocadinho mais alargada, o turismo local também cresceu imenso. Esta zona ainda estava muito feia, mas agora está tudo a ficar giríssimo à volta e acho que isso é óptimo para todos nós.” Antes de partirmos pedimos sugestões menos óbvias no Porto e Edu, ao balcão, sugere-nos a Casa Bô. Foi assim que acabámos a discutir Hegel e o sentido de si numa sexta-feira à noite. O tempo trocou-nos as voltas ao programa para abri-lo a novas direcções.
Entretanto, já anoiteceu, a chuva corre miúda e a ida para Campanhã definitivamente adiada para o dia seguinte. É tempo de outra sugestão de Marta: o B.O.P., onde costuma ir com os amigos. Cerveja artesanal na mão, milhares de discos por decoração e banda sonora. Ainda não são 20h de uma quinta-feira e o bar começa a encher.
A mesa de quatro para uma não ficará assim por muito mais tempo. A nós juntam-se Amanda e Argus, dois brasileiros a viver no Porto. Conversa animada, batatas fritas em teia de queijo, sopa de cogumelos deliciosa. Ela veio para cá estudar artes há quatro meses, ele está a finalizar uma formação na empresa onde trabalha no Brasil. “Vou voltar agora para Porto Alegre e mudo-me para cá em Abril.” Falamos da reportagem e as sugestões são tantas que não conseguiremos fazer tudo. Ficam as dicas para quem quiser explorar: os cafés Buuh!, Ceuta e Pretinho do Japão, a livraria das Galerias Lumière, a loja de discos Matéria Prima ou o pôr do sol no jardim das Virtudes.
Missão: Campanhã
A manhã acorda sem chuva e retomamos o destino. Campanhã. A Rua do Heroísmo estende-se qual espinha dorsal pela freguesia e é nela que começamos o passeio. Ainda entramos no STOP, centro comercial transformado em colmeia de salas de ensaios para bandas locais. Dica de Amanda. Mas mantém-se deserto a esta hora da manhã. Continuamos, com outra dica no bolso: a Casa de Presuntos O Xico. Mesmo a tempo de um segundo pequeno-almoço: café e sandes de presunto, fatiado na hora em doses generosas. Entre o balcão e uma fila de telhas de barro, gravitam as pernas de presunto que dão nome à casa.
Há 25 anos que Francisco Braga, o “Xico”, aqui serve sandes de presunto e queijo da serra, de pernil, de fígado de porco ou de bacalhau frito. Mais os rojões, as papas de sarrabulho e demais petiscos que a mulher, Maria Helena, prepara na estreita cozinha. Todos os dias aqui estão, das 7h às 21h, com folga ao domingo. Dá para viver, não para enriquecer, vai-se queixando Francisco. “Trabalhamos com os portugueses. Mas [esta zona] continua parada na mesma. [As entidades responsáveis] só se interessam pela Baixa e esquecem-se das redondezas”, critica. Teme que quando a vaga do turismo cá chegar seja tarde de mais. “Se calhar algum comércio tradicional já fechou, porque há aí muitos a passar dificuldades para sobreviver.”
Umas portas ao lado, Nuno Rodrigues surge atrás de um mar de câmaras fotográficas analógicas. São mais de 3000, de todas as formas e preços, espalhadas por estantes, caixas, vitrinas e mesas. Um caos de relíquias que Nuno anda a tentar catalogar e organizar. Aqui, até Jesus Cristo tem uma câmara pendurada ao pescoço. Nuno mora no andar de cima, enquanto que no rés-do-chão tinha uma loja de informática. Até que a colecção iniciada em 2010 — entretanto transformada em blogue e site de vendas — começou a sair fora de controlo. “Um dia a minha mulher disse-me: ‘Sou eu ou as máquinas’”, ri-se. O Sítio do Cano Amarelo foi a solução. Trocou o salário da engenharia informática pela paixão sem stress das analógicas. E está feliz, gaba-se muitas vezes, como que a querer fazer inveja.
A relação de Nuno com a fotografia analógica conta-se em muitas histórias. Fala das câmaras na estante com a precisão de um aficionado. “As primeiras fotos reconhecíveis da Terra foram tiradas com uma igual a esta mas modificada, para conseguirem disparar com o fato de astronauta vestido”, conta, apontando para uma Hasselblad 500. Com a herança da avó, 700€, comprou a primeira câmara. Uma Pentax K10, que ainda guarda, apesar de já não funcionar. “Andei a adiar a venda e estragou-se nas minhas mãos.”
A colecção, no entanto, começou quando estava a morar no Reino Unido. “Cheguei a comprar 20 quilos de máquinas [numa feira de rua] por 20 libras”, recorda. “Depois vendia-as para comprar aquelas que eu queria.” Hoje assume-se um “snob” do analógico. “Comecei com as baratas, mas davam muito trabalho. As boas vendem melhor e dão mais satisfação.” Actualmente, raramente procura novas câmaras para comprar e revender. São os proprietários que vêm ter com ele para fazer negócio. “Isto chegou tudo ontem, vieram-me aqui trazer, nem pedi”, aponta para um caixote.
A conversa dava para todo o dia, mas a fome começa a apertar. Continuamos caminho até à adega A Viela, já próxima da estação de comboios. Ainda não são 13h mas o restaurante está completamente cheio, num corrupio incessante. No quadro de ardósia, a ementa do dia: francesinhas, tripas à moda do Porto e fanecas guarnecidas, 5€ o prato. Pouco tempo passa quando uma das funcionárias volta ao quadro. Na cozinha, já nada sobra além de tripas. Rosa Meireles, proprietária da adega, nasceu na Ribeira mas viveu aqui no bairro o tempo da meninice. “Éramos dez irmãos, foi a minha tia e madrinha que me criou até aos 14 anos aqui na Rua do Heroísmo”, recorda.
Em 2010, regressou ao bairro para abrir A Viela. Funciona sobretudo ao almoço, com pratos típicos já estabelecidos para cada dia da semana. “Rancho à segunda, cozido à quinta, tripas e francesinhas à sexta e cabidela ao sábado”, vai enumerando. De vez em quando, organizam jantares para grupos. Não sabíamos, mas sexta é dia de fado vadio na adega, por isso regressamos à tarde para assistir. Luzes desligadas, uma casa cheia em silêncio, dois guitarristas e um grupo de fadistas que vai cantando à vez num recanto da sala.
Quando chegamos, é Abel Silva quem aquece as hostes. Canta desde pequenino. Ouvia os grandes artistas da época no rádio portátil e deliciava-se quando a mãe trauteava pela casa na Travessa das Eirinhas, bairro de uma “pobreza muito grande” na altura. “Quando fui para o Ultramar já andava no fado”, recorda. No entanto, quando a filha nasceu, a mulher pediu-lhe que parasse. Criar uma família não era compatível com tantas noites passadas nas casas de fado. Quando a mulher faleceu, em 2010, a paixão de criança voltou a falar mais alto. Actualmente integra um colectivo de fadistas que corre vários espaços no Porto, com espectáculos três a quatro vezes por semana. Abel volta para dentro e nós seguimos a sugestão deixada por Rosa momentos antes: já visitaram ali o Espaço Mira?
Quando o Mira abriu, há pouco mais de quatro anos, nada em Campanhã remetia ainda para o movimento artístico que entretanto começou a surgir. “Estava associado a uma ideia de pobreza e abandono”, recorda Manuela Matos Monteiro. “De Campanhã chega-se e parte-se, não se fica.” Mas Manuela e o marido, João Lafuente, gostavam da energia do bairro. E quando chegaram aos antigos armazéns da Rua de Miraflor foi amor à primeira vista. O sonho de “um dia mais tarde” criarem um sítio no Porto dedicado à fotografia, onde profissionais consagrados e jovens talentos pudessem expor os seus trabalhos, estava prestes a concretizar-se. A experiência, diz, tem “sido incrível”. “A afluência tem sido um fenómeno. Evoluiu de uma maneira que nunca tínhamos pensado”, confessa.
O Espaço Mira e o Mira Forum acolhem exposições todo o ano, sobretudo de fotografia. Em Abril do ano passado, Manuela e João abriram o Mira, na rua de trás, dedicado à performance. Entre os espaços, organizam concertos de jazz, tertúlias mensais e sessões de ioga. Já realizaram 36 lançamentos de livros.
O novo lar da fotografia na cidade transformou-se em espaço cultural, numa estreita relação com a comunidade local. “Tínhamos de ser aceites e mostrar que tínhamos vindo para ficar”, defende Manuela. Só assim o projecto podia resultar. E é dessa “disponibilidade para ouvir e integrar” quem já cá estava que vem o sucesso do Mira, acredita. Por isso, é o que pede a quem chega agora. Que sejam “residentes” no verdadeiro sentido da palavra. “Que se tenha em conta a comunidade onde se está e se traga riqueza ao lugar. Não é vir, fazer e zarpar.”
Desde que os “primeiros malucos” abriram o Espaço Mira, todos os armazéns da rua foram adquiridos e transformados em ateliers de músicos, arquitectos, designers. “Às vezes, vêm-me perguntar se ainda há edifícios para comprar na zona. Sobretudo estrangeiros e artistas”, conta. Manuela está optimista. A “zona mais virgem da cidade” começa a ser descoberta e tem um “potencial enorme”. “Espero que todo o parque habitacional seja reabilitado para actividades que misturem as pessoas. Sem guetização. Só se ganha com a diversidade.” O encanto pela freguesia é tanto que Manuela e João vão mudar-se brevemente para Campanhã. “É a prova de que gostamos mesmo”, ri-se.
Fino novo, fino antigo
Já estávamos no Porto quando descobrimos que a Fábrica de Cervejas Portuense ia ser inaugurada na primeira noite da nossa estadia. No dia seguinte, passamos por lá. Quase um ano depois do inicialmente previsto, o enorme espaço instalado na Rua de Sá da Bandeira abriu ao público, em soft opening, a 15 de Fevereiro. Entra-se pela loja, onde se vende a cerveja aqui produzida, Nortada, mas também t-shirts, recordações e produtos gastronómicos regionais. Passa-se de seguida a uma zona de bar, com mesas altas e televisões para ver jogos de futebol. E depois ao espaço de restaurante. Para já, o segundo piso, com mais mesas, cozinha e laboratório cervejeiro, ainda está fechado ao público.
“Talvez tenha sido demasiado ambicioso pensar que durante um ano se pudesse fazer aqui uma fábrica de cerveja”, admite Tiago Talone, um dos fundadores da empresa. As obras no edifício começaram em Junho de 2016, em Fevereiro iniciaram a produção e em Abril lançaram a Nortada, com cinco tipos de cerveja diferentes. Agora, o projecto fica finalmente completo. “O português tem muito esta mentalidade do ‘ver para crer’. Precisa de conhecer a origem do produto para se identificar com a marca. Então, nada melhor do que ter uma fábrica no centro do Porto e ter a porta aberta”, argumenta Tiago. “Achámos que era essencial ter este restaurante para promover vários momentos de consumo de cerveja. Se fosse só um bar, estaríamos a condicionar a um momento, mas quisemos alargar.”
A ponte com a zona de produção, situada na cave, é feita através de duas caldeiras de cobre, para onde todos os olhares parecem convergir na sala principal. “São o coração da fábrica”, apelida Tiago. Na ementa, encontramos as cinco cervejas originais da Nortada, mais duas feitas em exclusivo para o espaço. E muitos, muitos pratos para picar e partilhar. “Aqui temos uma tentativa de inverter a forma como as pessoas interpretam a refeição. Normalmente escolhem o prato e depois a bebida que o acompanha. Aqui queremos o contrário: que venham beber a nossa cerveja, mas que depois tenham uma comida que a acompanhe.”
Por isso, na carta, há sugestões de pratos para cada cerveja. E a selecção gastronómica é a mais diversificada possível, para que seja possível ir pedindo diferentes tipos de comida, consoante a cerveja que se está a beber. Nota ainda para o pão, produzido aqui ao lado, na Confeitaria do Bolhão. É todo feito com o “mosto” que sobra após a fermentação da cerveja, à excepção dos hambúrgueres, em que as habituais sementes de sésamo foram substituídas pelo próprio malte, “que dá um sabor totalmente diferente”, garante o responsável.
Partimos para uma mudança total de cenário. O fino continua à mesa, mas este quer-se industrial e quase sempre acompanhado por um prato de tremoços. Do passado desportivo, o Guindalense Futebol Clube guarda apenas o nome e as muitas taças e prémios expostos na sala principal. A colectividade do bairro, fundada em 1976, dedica-se agora exclusivamente à organização de eventos culturais, como bailes, concertos e petiscadas. Mas é a esplanada que aqui atrai a maioria dos clientes.
Vêm muitos estudantes, cada vez mais turistas. Os terraços, aninhados entre a muralha fernandina e o bairro dos Guindais, tem uma vista privilegiada sobre a Ponte Luís I, a serra do Pilar e o cais de Gaia. E todo o espaço mantém o ar castiço e bairrista. Depois de várias pessoas nos terem sugerido a visita, é aqui que terminamos a tarde, já a noite ilumina o cenário pitoresco. Um fino, um prato de tremoços, outro de amendoins e, por momentos, a esplanada quase por nossa conta.
O bom tempo sabe a vitória
Sábado começa cedo. Há que ser vespertino para apanhar o melhor da Vandoma. A Avenida 25 de Abril, para onde se mudou a feira da “ladra” do Porto em 2016, parece um tapete de bugigangas, roupa, livros, brinquedos e toda a espécie de parafernália electrónica que acreditávamos já estar votada ao selo de artefacto tecnológico. Velhos microondas, telemóveis dos anos 1990, computadores antigos, dezenas de teclados, ratos, cabos para todas as entradas e o ocasional Magalhães.
Sobre panos no alcatrão, encontram-se fotografias emolduradas, pratos, ferramentas, tomadas. “Rádio antigo é igual à mulher do amigo. A gente olha, admira mas não mexe”, lê-se numa das bancas. Mais à frente, alguém se mostra interessado em comprar um canivete. “Mas tenha cuidado com isso e não diga onde comprou, que ainda pode ter vestígios de ADN”, brinca o vendedor.
Para o pequeno-almoço, vamos até ao Lanchinho da Vitória, a dois passos da Torre dos Clérigos. Encontrámos o espaço na última visita ao Porto por mero acaso. Estávamos a estacionar em zona indevida só para ir espreitar o miradouro por breves momentos quando aparece Fernando Carneiro à janela. “Se quiserem passear mais um pouco pela Baixa, podem dar-me as chaves que eu estaciono melhor assim que houver um lugar.”
Deixámos as chaves e o carro bem estacionado, no lugar habitualmente reservado a Fernando. Quando a mulher voltou das compras para o café, deixou o carro na passadeira só para não mover o nosso. “Aqui temos de ser pau para toda a colher”, ri-se agora Conceição. Só no dia anterior evitaram multas a quatro vizinhos. E volta e meia tomam conta de algumas unidades de alojamento local nas redondezas.
Fernando tinha 12 anos quando veio de Resende para o Porto. Há 20 anos que tem O Lanchinho da Vitória. “Moravam umas 150 pessoas só neste bocadinho. Agora não vive ninguém”, lamenta, falando do edifício no fim da rua. “A Fundação [para o Desenvolvimento da Zona Histórica do Porto] vendeu a particulares e eles correram com as pessoas.” A última família terá saído há uns dez anos e, desde então, o prédio está votado ao abandono.
Apenas o pátio continua a ter utilização, transformado em miradouro improvisado. Voltamos a admirar as vistas sobre o casario e o rio Douro e partimos à procura de outra sugestão de Amanda: a Rosa Imunda, na Travessa do Ferraz. Invejamos o terraço com esplanada que avistamos da rua, mas a porta está fechada. Descobrimos no Facebook que os proprietários estão, de momento, fora do país.
Para o almoço, tinham-nos falado da Taberna de Santo António, nas Virtudes. Há muito descoberta por locais e estrangeiros, é um desafio de paciência arranjar mesa num sábado de sol. No caderno ao balcão, há nomes suficientes para uma hora de espera. Estamos quase a desistir quando percebemos que a rapariga atrás de nós traz os pais pela primeira vez ao restaurante. Garante que vale a pena. “Ainda é um daqueles sítios típicos, de comida caseirinha.” Dos pratos tradicionais, mantêm-se “a feijoada, as tripas, o rancho, a jardineira, o bacalhau à João do grão, o bacalhau à Braga”, enumera mais tarde Hermínia Mimoso, à frente da taberna há 29 anos.
“Antigamente era um tasco, onde vendiam vinho, sandes de fígado, e essas coisas tradicionais portuguesas. Depois vi que isto precisava de ser mais explorado e tentei fazer coisas diferentes, então comecei com os rissóis, os pastéis de bacalhau, as pataniscas, as iscas, o arroz de feijão.” Ainda hoje, os fritos são uma das grandes especialidades da casa, generosos e enxutos. Mas a clientela mudou muito.
Continuam a vir muitos portugueses e vizinhos do bairro. Mas também cada vez mais turistas. “Agora é que estamos a viver um bocadinho melhor”, conta Hermínia. “Quando vim para aqui fazia à volta de dez, 15 jantares. Agora sou capaz de fazer 50”, compara. “Se mantivesse só o cliente que tinha antigamente, não podia ter o pessoal que hoje tenho a trabalhar.”
Apesar da popularidade crescente da Taberna, Hermínia recusa mudar demasiado a ementa ou aumentar os preços. “Isto é comida nossa de casa, não há diferenças de ser para A, B ou C”, garante. Da vaga turística lamenta apenas que os habitantes estejam a ser “deitados fora”. “Antigamente via tudo a cair por aqui abaixo, eram tudo janelas partidas. Ainda bem que alguém restaurou as casas vazias. Agora as casas cheias, a mandar [pessoas] para a rua, com isso não concordo muito, mesmo que seja com eles [turistas] que vivo.”
A tarde vai subindo num sol glorioso e o Passeio das Virtudes vai-se compondo de grupos de jovens à conversa, entre copos de cerveja. No jardim, lá em baixo, a afluência dilui-se entre os recantos relvados e os bancos espalhados pelos diferentes patamares. Há quem leia, quem medite e quem namore, quem passeie os animais de estimação. Muito nos falaram do pôr do-sol nas Virtudes mas acabamos por trocá-lo por uma última sugestão: o Mirajazz, varanda musical escondida nas Escadas do Caminho Novo, um projecto ligado ao Grupo Musical de Miragaia.
Caminhamos sem pressas, entretidos com as conversas entre vizinhos. Mas o cenário é de Primavera e, apesar da localização recôndita, o MiraJazz, inaugurado no final de Julho, já não é um segredo no Porto. A esplanada está completamente cheia e a segunda banda da tarde prepara-se para iniciar o concerto. O entardecer vai desmaiando as cores do casario sobre as margens do Douro, a ponte da Arrábida adormece no horizonte. Olhamos em volta e mal vemos turistas. Ainda bem. Os portuenses merecem um lugar de vistas soberbas e boa música que ainda não foi tomada pelo turismo.