Homens vítimas de abuso sexual só falam dele mais de 20 anos depois

A associação Quebrar o Silêncio, que presta apoio a homens vítimas de abuso sexual, completa um ano de funcionamento nesta sexta-feira. Desde Janeiro de 2017, recebeu pedidos de apoio de cerca de 50 homens, mas também de familiares e amigos. Em cerca de 90% dos casos, os agressores são pessoas conhecidas das vítimas.

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“Grande parte dos casos acontece na infância”, diz Ângelo Fernandes, fundador da associação Quebrar o Silêncio Nuno Ferreira Santos

Mais de 20 anos – é o período de tempo que grande parte dos homens vítimas de abuso sexual precisa para iniciar a denúncia do caso. A vergonha, o medo, a incapacidade de reconhecer o que aconteceu, a dificuldade de se ver na posição de vítima são alguns dos factores que jogam para que este período de silêncio seja tão prolongado.

A associação Quebrar o Silêncio, que presta apoio especializado a homens que sofreram abuso sexual, completa o primeiro ano de funcionamento nesta sexta-feira e apresenta dados que retratam o longo período de silêncio dos homens até falarem sobre os abusos. “Grande parte dos casos acontece na infância”, explica Ângelo Fernandes, fundador da associação. Acrescenta que a fatia maior dos homens que procuram apoio está na casa dos 35, 40 anos, mas o leque é vasto: vão desde os 22 aos 65 anos. A percentagem dos que procuraram apoio pela primeira vez é de 78%.

A sede da Quebrar o Silêncio é em Marvila, Lisboa. Ângelo Fernandes, 36 anos, técnico de apoio à vítima, conta com a colaboração de uma psicóloga que faz o atendimento especializado, como consultas de psicoterapia (presenciais e por Skype) e grupos de apoio, que se reúnem às quartas-feiras ou partilham experiências através do WhatsApp.

A Quebrar o Silêncio também trabalha com outras associações – por exemplo, os casos de jovens LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros e intersexuais) são por vezes reencaminhados para associações como a Casa Qui, que tem um atendimento mais especializado em questões de género. Mas também as mulheres procuram a Quebrar o Silêncio. Foram quase 20, ao longo do último ano. São reencaminhadas para organizações como a Associação de Mulheres contra a Violência (AMCV), que também actua em Lisboa.

"Agora é que vou procurar apoio"

“O contacto com alguma mensagem da nossa associação pode servir como elemento desencadeador, ou que surge no momento certo e as faz pensar: ‘Agora é que vou procurar apoio.’” “Até já podiam ter conhecimento de associações como a AMCV, mas quando tiveram esse contacto ainda não estavam preparadas para procurar apoio.”

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Para homens ou mulheres, o que podem ser estes elementos desencadeadores? Um filme, um livro, um artigo num jornal, um comentário ouvido na rua. “Muitas vezes pode ser um evento de vida, o nascimento de um filho... Às vezes pode acontecer quando o filho chega à idade na qual o homem foi vítima de abuso.”

No caso de Ângelo, foi uma notícia que leu logo após ter chegado ao Reino Unido, através da qual descobriu que um antigo colega tinha abusado de centenas de raparigas. O choque ao ver uma cara conhecida associada a uma notícia tão assombrosa trouxe memórias dos abusos que tinha sofrido na infância, por alguém conhecido da família. “Desencadeou em mim alguma coisa que estava a tentar reprimir havia muitos anos. E foi nesse momento que percebi que estava ali qualquer coisa que precisava de resolver.” Procurou aconselhamento e chegou à Survivors Manchester, uma associação onde encontrou apoio para recuperar do trauma.

Já em 2016, depois de terminar o acompanhamento, resolveu deixar o trabalho como designer 3D e regressar a Portugal. Pensou que, se o “elemento desencadeador” tivesse acontecido enquanto estivesse no seu país, não teria encontrado nenhuma associação especificamente voltada para os homens que sofreram abuso sexual. E achou que era uma missão que não podia deixar de cumprir.

O que é que define ser homem?

Dois terços dos 46 homens que procuraram a Quebrar o Silêncio desde Janeiro do ano passado foram alvo de abusos antes dos 11 anos. A duração média destes abusos é entre três e quatro anos. Mais de metade dos casos ocorreram na família, enquanto 40% foram alvo de abusos por conhecidos da família e apenas um dos homens foi vítima de alguém desconhecido. Contudo, é depois de 25 anos que, em média, estes homens procuram o apoio da associação.

Como ajudar os homens que sofreram abusos sexuais a procurar ajuda mais cedo? Para Ângelo Fernandes, é preciso conversar. Lançar o debate. Levar o tema às escolas, organizar e participar em eventos que possam informar, procurar as crianças mas também os pais.

A Quebrar o Silêncio aposta, por isso, no trabalho com estudantes. Foram quase 900 alunos que participaram em acções de sensibilização ao longo do último ano. Para já, o trabalho tem sido feito com turmas do ensino secundário e em cursos do ensino superior ligados à psicologia e educação. Mas o plano é preparar acções de sensibilização adaptadas a turmas do ensino básico.

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Na reunião de arranque desta semana de aniversário, os colaboradores da associação partilham impressões sobre as sessões de sensibilização realizadas numa escola em Portimão na semana passada. “Um rapaz não pode chorar.” “Um rapaz tem que ser forte.” “Ser homem é ser o pilar que sustenta a família.” Os estereótipos sobre o que define a masculinidade são vários. Muitos alunos ficam surpresos quando descobrem que um em cada seis rapazes é vítima de abuso sexual antes dos 18 anos. Alguns nunca pensaram no assunto, ou pensavam que acontecia só às raparigas.

O trabalho passa por cultivar outras formas de masculinidade entre os mais novos, desbloqueando barreiras que os impeçam de assumir que foram vítimas. “Enquanto continuarmos a dizer aos homens que não podem chorar, não podem falar das suas emoções, que têm de ser capazes de se defender e têm de ser eles próprios a resolver qualquer problema, cria-se uma barreira enorme”, lamenta Ângelo Fernandes.

É preciso preparar os rapazes para se tornarem homens que não tenham medo de denunciar. “Se formos para a educação e desde cedo educarmos os rapazes a dizer que podem chorar, que podem falar dos sentimentos e que isso não afecta a sua masculinidade, que não há problema em dizerem que precisam de ajuda, mais tarde eles vão procurar apoio.”

Há uma série de mitos

Entre os alunos, também se ouviu que “um homem sério não pode ser alvo de abuso por parte de uma mulher”. Para muitos, o próprio conceito de abuso gera perplexidade. E há uma série de mitos, em particular no que toca ao abuso sexual masculino. “A ideia de que um rapaz teve sorte, se foi vítima de uma mulher agressora, que o abuso sexual entre homens só acontece nas prisões ou entre homossexuais, a ideia de que o homem é sempre o agressor, e nunca a vítima”, exemplifica Ângelo. “Há uma ideia errada de que o abuso sexual é só penetração. A ideia de que se um rapaz tiver uma erecção durante o abuso não é abuso, porque se estava sexualmente excitado é porque estava a consentir. E que se a vítima não tentar fugir ou não tentar impedir o abuso é sinal de consentimento.”

Estereótipos como estes, aliados a estratégias de manipulação dos agressores, fazem com que seja ainda mais difícil para um homem assumir que sofreu abuso sexual. Para o explicar aos estudantes, Ângelo regressa à estratégia dos números. “Quando dizemos que só 16% dos homens sobreviventes é que se reconhecem como vítimas de abuso sexual ou que só 4% é que denunciam o caso, eles percebem o impacto que isto tem.”

O desafio para o segundo ano da Quebrar o Silêncio é chegar a mais pessoas. Para os primeiros meses de 2018 está previsto o lançamento de um podcast que conta no primeiro episódio com o testemunho do músico Tozé Brito. Em Novembro, deverá ocorrer a segunda edição do encontro sobre o tema “O homem promotor da igualdade”.

Na manhã desta sexta-feira, num encontro em que se vai reflectir sobre o primeiro ano de actividade, brinda-se também aos mais de 40 homens que decidiram reescrever as suas histórias.

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