Nova Iorque não é para velhos

Depois de um dos grandes filmes americanos dos últimos anos, Love Is Strange, Ira Sachs regressa com uma nova história de Nova Iorque. Homenzinhos, sobre a amizade entre os filhos de uma inquilina e um senhorio em litígio, é “uma batalha pela classe média”.

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Ira Sachs é um novo “mestre” de um cinema americano: evoca simultaneamente a simplicidade formal dos clássicos e a complexidade dramática da nova Hollywood FOTO: William Lacalmontie/Getty Images
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“Toda a gente tem as suas razões” é uma frase que ficou célebre a partir de A Regra do Jogo, o clássico imortal do cineasta francês Jean Renoir. Há coisa de um ano, era com essa frase que o cineasta americano Ira Sachs se despedia de nós quando o entrevistámos a propósito da estreia portuguesa de Love Is Strange – O Amor é uma Coisa Estranha. Hoje, é com essa mesma frase - “Toda a gente tem as suas razões” - que começa a nossa conversa com Sachs a propósito de Homenzinhos, o seu novo filme, esta semana nas nossas salas.

Não é um simples acaso, mesmo que Sachs confesse que, embora Renoir seja um dos seus referentes cinematográficos, só aplicou a frase a Homenzinhos depois de ter terminado o filme. É que, como o americano confessa, o novo filme, embora independente do anterior Love Is Strange, está-lhe ligado umbilicalmente: ambos foram feitos à sombra tutelar de Yasujiro Ozu, na sequência de um ciclo de filmes do cineasta japonês visto em Nova Iorque. “A sua abordagem minimalista às experiências quotidianas da vida influenciou-nos muito”, diz Sachs, referindo-se a si e ao seu co-argumentista regular Mauricio Zacharias. Mas o cineasta diz que existe, de facto, uma “sensibilidade comum a ambos”, como se, depois do olhar sobre a velhice de Love Is Strange – pontuado pela presença de um neto adolescente – Sachs e Zacharias tivessem sentido que precisavam de olhar para as gerações mais jovens e para o modo como navegam o nosso mundo. “Foi um ponto de partida para Homenzinhos”, confirma Sachs, por Skype de Nova Iorque à beira do Natal.

Brian (Greg Kinnear) acaba de herdar o prédio do pai, mudou-se para o antigo apartamento para poupar dinheiro, e o aluguer da loja no rés-do-chão faz-lhe falta, mas não quer despejar a inquilina de longa data. Esta, Leonor (Paulina García), compreende que os tempos mudaram, mas a loja não rende o suficiente para suportar o aumento de renda e sabe que se o pai de Brian fosse vivo a questão nem se levantaria. Os Homenzinhos são Jake (Theo Taplitz), o filho de Brian, reservado e artístico, e Tony (Michael Barbieri), o filho de Leonor, extrovertido e activo, que se tornam muito rapidamente amigos enquanto a questão da casa vai envenenando aos poucos a relação entre os pais. São ao mesmo tempo testemunhas e vítimas do que se passa à sua volta, apanhados num conflito de raiz económica que os transcende mas que os afecta, a eles, mais do que aos outros todos – porque para eles não é o dinheiro que importa. A Sachs, cineasta para quem o Mundo lá fora é indissociável do mundo cá dentro, interessa menos apontar dedos sobre quem tem razão, quem é o bom e quem é o mau. Apenas perceber como é que as pessoas enfrentam a sua “batalha pela classe média”, por garantir uma existência digna num mundo frio.

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A Sachs interessa menos apontar dedos sobre quem tem razão. Apenas perceber como é que as pessoas enfrentam a sua “batalha pela classe média”, por garantir uma existência digna num mundo frio

Homenzinhos recorda Jean Renoir e a sua frase da Regra do Jogo, “toda a gente tem as suas razões”. No seu centro está um conflito entre um inquilino e um senhorio, mas a história não diaboliza nenhuma das partes em confronto.
Essa foi a nossa estratégia, minha e do Mauricio Zacharias: criar algo que defino como “suspense moral”. Foi uma compreensão quase instintiva do que tornaria o filme interessante e surpreendente: a ambiguidade. Não tornámos simples para o público decidir por quem deve torcer. O senhorio não é muito rico e o inquilino também não é muito pobre, ambos têm uma educação muito semelhante… De certa maneira, o filme é uma batalha pelo centro, pela classe média. E isso torna-o muito mais interessante. Pelo que a sua referência ao Renoir faz todo o sentido no contexto deste filme, embora, curiosamente, só me tenha vindo à cabeça já depois de o termos acabado, quando alguém ma citou.

A esse respeito, li recentemente um ensaio que descrevia os seus filmes como “contos morais do capitalismo moderno”.
Creio que é aceitável. Quer dizer, não sou nenhum ideólogo…

Não, mas os seus filmes têm muito a ver com a influência do capitalismo na vida moderna. O drama nasce porque há uma casa que de repente passou a estar fora do alcance financeiro dos inquilinos.
Sim, penso que a economia é tão central à caracterização da personagem como o género, a raça, a cidade onde a acção decorre… Tudo isso torna as histórias reais, tangíveis. A dificuldade de sermos nós próprios num mundo onde o capitalismo tem a primazia deixa-nos muito expostos. São forças muito poderosas e muito difíceis de contornar, independentemente do dinheiro que se tem, e navegar por entre essas forças é algo de muito violento. E vem-me logo à cabeça Tchekov, que não pode ser separado das questões da economia e do capitalismo. Aliás, nem Shakespeare…

É daí que vem a presença da Gaivota em Homenzinhos?
Na verdade, tentámos que fosse o Huis Clos de Sartre! Achei que teria sido divertido, mas os herdeiros não autorizaram. Ora, eu e o Mauricio estamos a trabalhar num filme sobre Montgomery Clift, que representou A Gaivota em palco, e conhecíamos bem a peça, pelo que nos pareceu relevante usar A Gaivota. A ideia de Greg Kinnear a representar Tchekov também nos pareceu curiosa. Ele é um dos grandes actores naturalistas americanos dos nossos dias, mas raramente o vemos em papéis destes. Não sei de nenhum outro actor com quem tenha trabalhado que esteja sempre “presente” – ele está sempre “no momento”, e não tem medo de ser vulnerável ou desagradável.

Como é que “entrosou” Kinnear ou Jennifer Ehle com miúdos sem experiência profissional? Diz-se que dirigir crianças é muito difícil.
Mas não é! Isso é um erro. O meu primeiro filme, The Delta, foi todo feito com actores não profissionais, e ao longo do tempo fui aprendendo a identificar quem é capaz de representar. E isso não tem nada a ver com a experiência profissional ou com ter nove anos de idade ou 80 anos de idade. Os instintos de representar frente a uma câmara estão lá ou não estão. Os dois miúdos de Homenzinhos, Theo Taplitz e Michael Barbieri, são dois dos melhores actores com que já trabalhei. Têm uma espécie de inteligência emocional, enquanto seres humanos, que os torna muito sensíveis ao que se passa à volta deles. Isso é muito importante para os actores, e é isso que eu acho que é ser um bom actor. Ouvir e reagir: é isso que é representar.

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"Creio que é isso que explica a intimidade do filme. É uma Nova Iorque que posso partilhar a partir da minha experiência, porque já cá vivo há quase 30 anos"

Quem surgiu primeiro, os adultos ou os miúdos?
O processo correu em simultâneo, mas eu sabia que o filme não existiria sem dois miúdos memoráveis, por isso comecei primeiro à procura deles. Para os adultos, estou interessado em actores capazes de encarnar a personagem sem deixarem de ser quem são. Um tipo de interpretação muito naturalista e generosa, que se preocupa mais com os pormenores e menos com os gestos e os movimentos. Muitas vezes, isso implica que os meus actores não são americanos, como em Homenzinhos Jennifer Ehle, Alfred Molina [ambos ingleses] ou Paulina García [chilena]. Penso que no geral estou interessado na improvisação emocional de um actor. O estar lá, a sua presença, a sua capacidade de ouvir.

Nova Iorque parece ser uma personagem do filme a tempo inteiro, provavelmente mais do que noutros filmes seus.
Creio que é isso que explica a intimidade do filme. É uma Nova Iorque que posso partilhar a partir da minha experiência, porque já cá vivo há quase 30 anos. Mudei-me para cá em 1988 e morava numa esquina de Brooklyn que pertencia a um bairro italiano, com uma rua dominicana, e eu era o universitário branco que vinha “gentrificar” o bairro… Ao longo dos anos fui vendo o efeito dessas mudanças, que têm qualquer coisa de tremor de terra. As coisas mudam ao longo do tempo, e o filme procura levar em conta, e observar, essas mudanças, através dos pormenores que vêm de conhecer Nova Iorque.

O seu cinema instala-se sem esforço numa certa maneira clássica de filmar. Isso é algo de que tem consciência?
Não estou interessado em fazer filmes que sejam sobre mim, que mostrem as minhas referências. O que me interessa são as histórias, e a minha educação como espectador e como leitor foi toda feita com fontes clássicas: Henry James, Tchekov, Ozu… São artistas cujas histórias me comoveram profundamente, também pelo modo como as contam. E penso que internalizei algumas dessas estratégias. É como se eles fossem parte da minha família criativa, mas espero que essas referências não pareçam nostálgicas nem demasiado preciosas. Mas, dito isto, os meus filmes são muito pessoais porque, como artista, é a minha personalidade que tenho para oferecer. Não é melhor nem mais profunda do que as dos outros, é apenas minha. É uma abordagem muito instintiva, que de algum modo facilita as coisas: se eu não conseguir encontrar o meu lugar na história que estou a contar, não consigo contá-la. 

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