Quando a Torre Trump ficar dentro de água

Trump acena com mudanças que poderão reduzir em muito a herança do seu antecessor. A revisão de legado não sairá, porém, grátis.

As antevisões do legado de Barack Obama foram longamente apresentadas antes das presidenciais, mas a vitória de Donald Trump obriga a rever o que se julgava já feito. Um candidato a revisão é o contributo no combate às alterações climáticas que os EUA deixam realmente para o futuro. Sobretudo depois do impasse em que ficou a conferência de Marraquexe, assombrada pelo milionário que trata a mudança climática por “embuste” e promete o renascimento da energia fóssil para criar milhões de empregos na maior economia do mundo.

Se o Presidente eleito mantiver a promessa, não será a primeira vez que os EUA abandonam a luta contra as alterações climáticas. O republicano George W. Bush também fez tábua rasa dos compromissos que Bill Clinton assumira quatro anos antes em Quioto. Mas entre estes dois tempos há uma diferença: acumulou-se evidência científica de que a temperatura média do planeta está a subir.

Obama não só recuperou a herança democrata, como traçou objectivos mais ambiciosos de descarbonização da economia – cortar as emissões das centrais eléctricas em 32% até 2030, responsabilizando-se o país por 20% do esforço mundial de corte de emissões até lá, o que lhe valeu a feroz litigância de 28 estados e mais de 1100 empresas, para além dos bloqueios do Senado e da Câmara dos Representantes. Ao mesmo tempo, presidiu ao boom histórico de petróleo e gás de xisto, devolvendo aos EUA o sonho da independência energética e a base material da sua tentação isolacionista. Nas previsões, a completa auto-suficiência acontecerá em 2022. Há dez anos, os EUA importavam 65% do petróleo, há um ano eram 28% e em 2020 serão 11% (tecnicamente já auto-suficiência).

Para Obama, o gás de xisto assegura à América, apesar da controvérsia ambiental, a transição para uma era de energia mais limpa e sem carvão. Hoje, os EUA são o maior produtor mundial de petróleo e e a segunda potência em energias renováveis, o que faz deste país o segundo maior emissor de gases com efeito de estufa, a seguir à China.

Mas para a América que votou Trump, não chega. A promessa é recuperar o carvão, muito mais emissor de CO2, e eliminar restrições à exploração de cinco biliões (milhões de milhões) de dólares de reservas de carvão, gás e petróleo. O mercado considerou que o Presidente eleito estava a falar a sério ao nomear, para a fase de transição, um lobista da energia fóssil (Mike McKenna) para o Departamento de Energia e um céptico da ciência climática, embora não cientista (Myron Ebell), para a Agência de Protecção Ambiental. A organização a que pertence foi financiada pela Exxon, está próxima do conglomerado industrial Koch, acusado de financiar grupos que negam a mudança climática e para o qual, segundo a imprensa dos EUA, McKenna também trabalhou.

Desconhece-se o que Trump vai fazer às renováveis, que têm sido impulsionadas pelas metas de energias limpas e por uma significativa descida de custos, em especial a eólica e a solar fotovoltaica. No final de 2015 este sector empregava directa e indirectamente cerca de 800 mil pessoas nos EUA  – 10% do bolo mundial (relatório IRENA 2016). É uma geração de trabalhadores mais jovem do que a que suspira pelo regresso do carvão, menos enquadrada sindicalmente do que as indústrias tradicionais que viram os velhos e poderosos sindicatos alinharem com Trump – a troco de algo que mais tarde se verá.

De forma irónica, a distribuição da capacidade instalada das renováveis nos EUA replica a tensão entre o país próspero das duas costas (os “beneficiados”) com mais sol e vento offshore, e o país em crise do centro oeste (dos “esquecidos”). Um emprego perdido no Midwest será mais barulhento do que um extinto na costa.

Trump acena com mudanças que poderão reduzir em muito a herança do seu antecessor. A revisão de legado não sairá, porém, grátis. Se os cientistas ligados à Academia de Ciências dos EUA estiverem certos, a costa leste do país será uma das mais afectadas e, por volta de 2100, zonas como Nova Iorque terão uma subida do nível do mar superior a um metro. Manhattan, onde fica a Torre Trump, também. Se nada se fizer, nas previsões dos cientistas, esse será um seu legado.     

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