Em cada ano, há mais 20 mil sobreviventes de cancro em Portugal
Aos problemas médicos decorrentes da doença juntam-se os problemas sociais, desde o regresso ao trabalho, até questões que se prendem com empréstimos bancários e seguros.
É inexorável: há cada vez mais sobreviventes de cancro. São entre 350 mil a 400 mil pessoas em Portugal, uma multidão que cresce a um ritmo de 15 mil a 20 mil por ano. Cinco anos após o diagnóstico, depois de serem considerados livres da doença, os sobreviventes de cancro enfrentam um sem número de dificuldades: no regresso ao trabalho, na negociação de empréstimos bancários e de seguros, mesmo no acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). O 2.º Congresso Nacional de Sobreviventes de Cancro arranca nesta sexta-feira em Coimbra.
Numa altura em que a taxa de sobrevivência aumenta e a incidência (novos casos) também, o acompanhamento e o apoio a quem teve doença oncológica começa a tomar forma. Quando organizaram o 1.º congresso, em 2012, os responsáveis da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC) estimavam que haveria 250 mil pessoas nesta situação. Agora, Carlos Oliveira, presidente do núcleo regional do Centro da LPCC, calcula que sejam 350 mil, tendo como base a incidência de há 20 anos.
As variáveis são fáceis de conjugar: havendo um aumento da incidência e uma evolução na taxa de sobrevivência, naturalmente cresce o número de sobreviventes, explica o médico.
Nuno Miranda, coordenador do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas, acredita que o número de pessoas que escaparam à doença — “não gosto da palavra de sobreviventes, parece uma coisa rara” — seja superior. Serão 400 mil, diz o médico, que espera que o Registo Oncológico Nacional, em criação, venha resolver o problema da falta de rigor das estimativas. As contas não são assim tão lineares, avisa. Mas, grosso modo, há cerca de 25 mil mortes e 50 mil novos casos por ano em Portugal.
Não sendo a favor do “privilégio do doente oncológico”, Nuno Miranda acredita que o grande problema dos sobreviventes passa pela integração social. “Os problemas sociais são mais complicados do que os problemas médicos." Mas sublinha que muitos sobreviventes terão que enfrentar também o problema dos efeitos da quimioterapia e da radioterapia a longo prazo: “É o preço do nosso sucesso."
Cinco anos após o diagnóstico, sem evidência da doença, os sobreviventes perdem algumas das regalias de que usufruíam, enquanto continuam a ser vítimas do estigma ainda associado à doença. O presidente da LPCC, Vítor Veloso, defende que esta barreira, a dos cinco anos, deveria ser alargada para dez anos para se garantir a protecção, mas Nuno Miranda discorda em absoluto: “Este é o período definido a nível internacional."
Defesa dos direitos
“O cancro era considerado uma doença aguda, sinónimo de morte. Hoje não é igual a morte. A taxa de sobrevivência do cancro da próstata é agora de cerca de 90%. No cancro da mama, aos cinco anos, [a sobrevivência] chega aos 90%. Quando comecei a tratar cancros da mama era 50%”, lembra Carlos Oliveira.
Apesar da crescente consciencialização, o caminho para assegurar os direitos dos sobreviventes de cancro ainda está a ser traçado. Após o primeiro congresso, aliás, a própria LPCC alterou os seus estatutos para incluir a “defesa dos direitos dos sobreviventes”.
Em Junho de 2015, foi criada em Coimbra a Unidade de Apoio Jurídico do Núcleo Regional do Centro da LPCC que, até Setembro passado, já deu resposta a 179 pedidos de ajuda. As questões relacionadas com impostos e as laborais estão na base da maior parte dos pedidos de ajuda (40% do total). Mas também há problemas relacionados com o SNS (juntas médicas, atestados de incapacidade, taxas moderadoras, transportes) e com a Segurança Social.
No Norte e no Sul, a LPCC começou recentemente a dar também apoio jurídico, segundo Vítor Veloso, mas este acompanhamento ainda não está organizado como na região Centro. De resto, é impossível contabilizar os pedidos de apoio. Há muitos telefonemas para a Linha Cancro, diz Veloso, sem adiantar números.
“Antes da abertura da unidade [de Coimbra], para contar o número de pessoas que pedia assistência, os dedos de uma mão eram mais que suficientes”, descreve Carlos Oliveira. Entretanto, nalguns casos, já há vitórias a destacar: os patrões ou as estruturas administrativas foram dando resposta aos pedidos. “É importante saber que os pareceres vingaram”, acentua o médico.
O regresso ao trabalho
O problema do regresso ao trabalho é dos mais complexos. No primeiro ano, “a pessoa está preocupada com muitas coisas, com a sua vida, sobretudo, e mete um atestado, uma licença e as coisas funcionam sem grande dificuldade”, descreve. Num prazo mais alargado, porém, há complicações do próprio tratamento, “efeitos secundários que podem impedir o desempenho dessa profissão”.
“Uma das dificuldades da aplicação da lei reside na adaptação do posto [de trabalho] às condições de saúde do doente. Muitas vezes as entidades patronais não são sensíveis a isso e a Unidade de Apoio Jurídico tem conseguido algumas vitórias”, sublinha André Dias Pereira, do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra (UC). Mas muitas pessoas “estão tão inválidas que querem a reforma e a junta médica não a dá”, relata.
Há pessoas, complementa Elisabete Ferreira, advogada e investigadora do Centro de Direito Biomédico, que voltam ao trabalho mas já não têm a mesma capacidade física e psíquica para desempenhar as actividades. Nestes casos, há “muita resistência por parte do empregador”. Algumas das disposições da lei também são ambíguas. “O empregador deve criar condições de trabalho adequadas à capacidade do trabalhador”, cita a advogada, para atestar que este “é um conceito indeterminado”.
Atestados de incapacidade
Quanto aos atestados de incapacidade passados pelas juntas médicas, estes têm habitualmente uma duração de cinco anos e são normalmente emitidos com uma incapacidade igual ou superior a 60%, o que permite o acesso a vários benefícios. O problema é que, quando há uma evolução favorável da doença, tende a haver uma diminuição do grau de incapacidade e, se este for inferior a 60%, os benefícios podem ser retirados. Mas isto não é assim tão linear, diz Elisabete Ferreira, que assegura que é possível beneficiar da taxa anterior desde que se preencha determinados requisitos legais.
“A legislação prevê essa protecção. A dificuldade está na aplicação da lei que já existe. Há muitas questões em que a legislação não é clara, o que nos permite sindicar as respostas que as entidades dão aos doentes. O nosso trabalho é muito esse. Discutir como se interpreta”, explica.
Há aspectos em que as alterações na legislação ocorridas nos últimos anos se revelaram prejudiciais, como aconteceu no caso do imposto único de circulação (IUC), que se tornou mais desfavorável, aponta Carla Barbosa, também advogada e investigadora no Centro de Direito Biomédico.