António Barbosa de Melo

Era um insigne jurista, um homem de consciência e de convicções, um dos grandes construtores da democracia portuguesa.

António Barbosa de Melo era um insigne jurista, um homem de consciência e de convicções, um dos grandes construtores da democracia portuguesa.

Já em 1967, na Revista de Direito e de Estudos Sociais, num magnífico estudo seu e de Afonso Rodrigues Queiró, se definia, com nitidez, o necessário respeito do legislador pelo conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Mas foi, após a Revolução, a fundação do PPD e, logo a seguir, na Comissão de Elaboração da Lei Eleitoral para a Assembleia Constituinte, que o conheci pessoalmente e com ele estabeleci relações de convivência e amizade que se prolongariam até hoje.

Esta Comissão trabalhou a partir do nada (porque nada podia aproveitar-se de antes do 25 de Abril) e conseguiu, de 6 de junho a 22 de agosto de 1974, elaborar as normas que continuam sendo as normas essenciais do Direito eleitoral português. Barbosa de Melo teve aí um papel relevantíssimo, sendo dele, por exemplo, a adoção da representação proporcional com o método de Hondt. Já não conseguiria, infelizmente (nem se conseguiria depois) introduzir a figura das coligações de listas: vários partidos concorrem juntos, mas, depois de apurado o total, na distribuição dos mandatos, atende-se aos votos obtidos por cada um individualmente (é um sistema mais transparente que o das coligações puras e simples).

Estivemos depois juntos na Assembleia Constituinte e, nas suas múltiplas intervenções, ele distinguiu-se pela serenidade e pela lucidez. Teve papel significativo na comissão de princípios fundamentais (na qual contribuiu para a afirmação da dignidade da pessoa humana no art. 1º da Constituição), bem como nas comissões de poder local e de sistematização. A ele se deve também, aquando da negociação para a 2ª Plataforma de Acordo Constitucional (de Fevereiro de 1975) a ideia de uma comissão constitucional que, além de órgão consultivo do Conselho da Revolução, fosse um supremo tribunal de fiscalização concreta de constitucionalidade. E seria esse o modelo – original no contexto europeu – que a revisão de 1982 consagraria, ao criar o Tribunal Constitucional.

Pouco antes da votação final global da Constituição, Sá Carneiro chegou a defender que o PPD se abstivesse – o que seria um erro histórico e a que nos opusemos eu, Barbosa de Melo e quase todos os Deputados do PPD na Assembleia Constituinte. Vale a pena, pois, recordar as palavras que, como presidente do grupo parlamentar, proferiu em 2 de abril de 1976:

“… não abraçar esta Constituição equivaleria para nós a um pecado capital contra o universo ético-político em que, indefectivelmente, nos movemos. Um dos axiomas mais caros ao nosso ideário reside na crença inabalável na democracia política.
Isto para nós significa que a verdade possível em política se há-de alcançar, e só pode alcançar-se, pela permanente conjugação das pequeninas verdades de cada, um. Será sempre intolerável que uma parte do povo queira ser todo o povo. Para nós uma pessoa, um partido, uma classe social, um aglomerado territorial jamais poderão legitimamente invocar o direito de apreciar e julgar a história, ou de fazer a política de um povo inteiro. (…)

“Mas acresce que a Constituição, descontado um ou outro ponto, também é obra nossa, incorporando as raízes características do pensamento político que norteia o Partido Popular Democrático. Não fugimos aos trabalhos de Comissão e às discussões do Plenário, combatendo sempre, muitas vezes com êxito, pelos ideais socialistas do nosso programa social-democrata, de raiz humanista e personalista. E podemos aparecer de cara levantada perante os nossos militantes e eleitores, pois muito do que fica a servir de leitura e frontispício à vida do povo português que tem a nossa marca. (…)

“Votámos a Constituição porque ela foi o produto honrado do jogo democrático. Votámos a Constituição porque, no essencial, ela também recolhe o fundamental do nosso programa.

“Mas votámos a Constituição sem qualquer crença fixista sobre a história. Votámo-la com a consciência clara de que este Povo de mais de oito séculos vai retomar, serena e firme, a sua longa aventura da liberdade.”

A vida levar-nos-ia, naturalmente, a percursos próprios, sem que se tivessem cortado os fortes laços que nos prendiam. E tive a honra e o gosto de, no ano passado, quando lancei o livro Da Revolução à Constituição – Memórias da Assembleia Constituinte, António Barbosa de Melo vir a Lisboa para fazer uma apresentação que me marcou e comoveu, assim como as todas as pessoas que lá estavam presentes.

Não será esquecido.

Constitucionalista

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