A nova família indie americana à sombra de Cassavetes
Robert Greene pertence a uma nova geração americana que faz filmes com meia-dúzia de tostões e nos seus próprios termos. Foi premiado no IndieLisboa com Kate Plays Christine e fala ao Ípsilon de uma “família” de cineastas que assume a sua dívida a John Cassavetes.
“A ideia de diluir fronteiras entre realidade e ficção não passa de uma treta académica se não levar a algum lado, a uma compreensão mais profunda da história. Caso contrário tudo não passa de um jogo, e eu não gosto de jogos.”
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Sejam bem-vindos ao mundo de Robert Greene (n. 1976), professor, crítico, cineasta, recém-aterrado do Missouri para visita-relâmpago ao IndieLisboa com a sua quinta longa-metragem. Kate Plays Christine, vencedor do Grande Prémio do Júri no festival português (garantindo desde já a sua exibição nos canais TVCine), depois de passagens badaladas em Sundance e no Forum de Berlim, é um exemplo dessa abordagem em profundidade das fronteiras entre real e inventado. <_o3a_p>
A partir do caso verídico de Christine Chubbuck, jornalista de uma pequena estação televisiva da Florida que se suicidou no ar em 1974, Greene segue a actriz Kate Lyn Sheil enquanto pesquisa a personagem de Christine em preparação para a representar numa narrativa ficcionada – narrativa essa que nunca existirá fora das balizas de Kate Plays Christine. “O conceito era acompanhá-la à medida que ela se aproxima do papel, mas tudo o resto que vemos à sua volta – as pessoas que ela encontra e entrevista, o modo como interage com elas – é um documentário”, explica o realizador na Culturgest, um par de horas antes da primeira exibição de Kate Plays Christine. “E não sabíamos como ela iria reagir. Não sabíamos o que o filme iria ser até o terminarmos.”<_o3a_p>
É essa dimensão meta-referencial, quase abstracta, que faz de Greene simultaneamente participante e testemunha de todo um modo de fazer cinema verdadeiramente independente que floresceu nos EUA, entre Austin e Nova Iorque, ao longo da última década. Apesar de natural de Charlotte, na Carolina do Norte, Greene, actualmente professor na Universidade do Missouri (onde é “cineasta residente”), faz parte dessa cena que o Indie tem acompanhado ao longo dos anos. A concurso ou fora dele, os “austinitas” Andrew Bujalski (Mutual Appreciation, Beeswax, Computer Chess) ou Joe Swanberg (Drinking Buddies) e os “nova-iorquinos” Alex Ross Perry (The Color Wheel, Listen Up Philip, Queen of Earth), Charles Poekel (Christmas Again), Sean Baker (Prince of Broadway), e Benny e Josh Safdie (The Pleasure of Being Robbed, Vão-me Buscar Alecrim) passaram pelo festival. Greene trabalhou regularmente com muitos deles, mais recentemente montando Listen Up Philip e Queen of Earth para Ross Perry, Christmas Again para Poekel ou 7 Chinese Brothers para Bob Byington. “Não me vejo como montador,” avisa, no entanto. “Faço-o porque me dá muito gozo, mas só o faço se me sentir livre, capaz de criar sem as limitações do meu próprio trabalho. Faço-o com o Alex porque ele me dá toda a liberdade para experimentar. Com o Charles, que foi meu estagiário, aconteceu porque era um cineasta estreante que precisava de ajuda para chegar onde queria ir. Mas tentei trabalhar com os Safdies e não resultou, porque eles precisam de outro tipo de colaborador, basicamente têm de se montar a si próprios...”.<_o3a_p>
Podemos falar verdadeiramente de família a propósito desta geração de cineastas que se ajudam permanentemente nos filmes uns dos outros? “Às vezes, sim, dá essa impressão,” explica Greene, exemplificando com o filme que o trouxe a Lisboa. Kate Plays Christine andava a “amadurecer” na sua cabeça há uma dezena de anos e não seria possível sem a relação de amizade estabelecida ao longo desse período com Kate Lyn Sheil e com o director de fotografia Sean Price Williams. Amizade necessária para aceitar o risco de um projecto que “dilui fronteiras” de um modo que implica uma absoluta liberdade face a gavetas ou etiquetas. “Desde o início, desde Nanook o Esquimó de Robert Flaherty [1922], que o cinema de não-ficção sempre consistiu numa dialéctica muito tensa entre o real e o fabricado. O que é novo hoje em dia é que essas técnicas estão a ser usadas para fazer coisas que talvez só John Cassavetes ou Luis Buñuel fizessem. Cineastas que também operavam entre a ficção e a realidade...”.
<_o3a_p>Mal-entendidos
O “ponto zero” desta geração é identificado por Greene como Frownland (2007) de Ronald Bronstein, projeccionista no circuito de arte e ensaio nova-iorquino – “uma obra-prima que nos mostrou o caminho”, um ponto de partida possível para uma nova maneira de pensar o cinema, genuinamente independente. Desafiadoramente outsider na sua abordagem, esta história “inclassificável” de um nova-iorquino inadaptado era, para Greene, “ambiciosa, pessoal, engraçada e louca”. “Todos pensámos, OK, o Ronnie conseguiu fazê-lo, mas ninguém o vai ver. Porém, Frownland começou a ser exibido aqui e ali, houve quem lhe começasse a chamar uma obra-prima… Já queríamos todos fazer cinema, mas o sucesso do Ronnie, nos seus próprios termos, a rodar em 16mm, com actores desconhecidos, foi algo de incrível. Ele lançou essa onda nova-iorquina. Permitiu-nos continuar.”<_o3a_p>
Parte da responsabilidade pertence igualmente às novas tecnologias: “Agora podemos propor uma experiência cinematográfica completa, a preços que vão dos mil dólares aos cem ou duzentos mil dólares, e isso tornou possível a muita gente ambiciosa forçar a entrada. Todos fazemos outras coisas para podermos correr os riscos que quisermos nos nossos filmes – o Alex apresenta-se como argumentista, o Sean Baker filma moda para pagar as contas.” É uma espécie de actualização do modelo iniciado por John Cassavetes, que aceitou papéis em filmes comerciais dos grandes estúdios para poder fazer Maridos, Sombras ou Noite de Estreia. “Cassavetes fez aquilo que todos estamos a fazer, mas fê-lo mais cedo e melhor do que nós”, concorda Greene. “Tinha coisas para dizer, estava desesperado por dizê-las, por mostrar as suas emoções, por trabalhar com os seus amigos, e não conseguia parar de expressar o que sentia. E os seus filmes são maduros, não são juvenis, é cinema para adultos da melhor maneira possível. E está a lidar com estas coisas imensamente complexas com os seus melhores amigos, em sua própria casa, com uma câmara...”.<_o3a_p>
Reconhecendo-o como uma espécie de “patrono” desta geração – a par de Richard Linklater, que provou ser possível trabalhar dentro e fora de Hollywood sem trair a sua integridade –, Greene defende também que Cassavetes serve mais como exemplo do que se deve fazer do que como modelo a copiar fielmente: “É importante não fazer um filme à Cassavetes, ou não tentar fazer algo que o pareça. Na sua maioria, os filmes maus que se fazem hoje parecem querer ser filmes do Cassavetes, e isso é algo que o Alex nunca vai fazer, nem o Sean, nem o Josh Safdie.” <_o3a_p>
E Robert Greene no meio disto? “Sinto-me provavelmente mais confortável do lado da não-ficção, embora os meus amigos mais próximos estejam do lado da ficção”, afirma. Greene coloca todas as suas longas – antes de Kate Plays Christine houve Owning the Weather (2009), Kati with an I (2010), Fake It So Real (2011) e Actress (2014) – na “gaveta” da “não-ficção”, designação que prefere a “documentário”, por ser mais “expansiva” e abrangente. "A maioria do que ouvimos hoje em dia sobre o documentário está completamente errada”, diz o realizador. “O processo é totalmente mal-entendido. A ideia de que as pessoas não estão a representar para a câmara, é tudo treta. O Joshua Oppenheimer [realizador de O Acto de Matar e O Olhar do Silêncio] é provavelmente o meu cineasta vivo preferido – e isso é dizer muito, porque o Frederick Wiseman ainda está vivo! –porque parece que independentemente chegámos a uma mesma compreensão: tudo aquilo de que falo e tudo aquilo de que ele fala tem sempre a ver com o cinema de não-ficção como algo sempre em diálogo entre o real e o fabricado.”<_o3a_p>
Curiosamente, Kate Plays Christine foi terminado ao mesmo tempo que uma outra versão da história de Christine Chubbuck – esta abertamente ficcional, Christine, com Rebecca Hall no papel principal sob a direcção de Antonio Campos (autor de Depois das Aulas e Simon Killer), um contemporâneo desta geração que se move em círculos diferentes. “Há uma ironia profunda nisto”, diz Greene. “Ouvi a história pela primeira vez há uma dúzia de anos da boca de um amigo meu, quatro ou cinco anos antes de fazer o meu primeiro filme, e pensei sempre 'um dia vou fazer um filme dela, porque ainda ninguém fez'. E agora aparecem dois ao mesmo tempo!”<_o3a_p>