Lar suspeito de maus tratos não é inspeccionado há dois anos e meio

Proprietária está a ser julgada por crimes contra idosos, mas o estabelecimento continua a funcionar.

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Lar funciona num prédio da Avenida 5 de Outubro, em Lisboa Ricardo Campos

Há dois anos e meio que a Segurança Social não inspecciona o lar de terceira idade Luz dos Pastorinhos, em Lisboa, cuja proprietária está a ser julgada por crimes de maus tratos de vários idosos. Situado no centro da cidade, na Avenida 5 de Outubro, o estabelecimento mantém-se assim a funcionar sem controlo, depois de uma inspecção efectuada em 2012 ter determinado o seu encerramento, por constituir um perigo para a saúde e integridade das cerca de duas dezenas e meia de utentes que ali residiam, alguns deles com quase cem anos.

O lar chegou a fechar em meados de 2012, por revelar, desde 2008, deficiências graves ao nível do funcionamento, nomeadamente falta de pessoal durante a noite e problemas ao nível da higiene e da alimentação. Os idosos passavam fome e frio, apesar de pagarem mensalidades entre os 1500 e os 1750 euros. “Para além de a alimentação se considerar insuficiente e inadequada, os horários das refeições não são adequados”, observaram os inspectores do Instituto da Segurança Social que ali se deslocaram há quatro anos: os pequenos-almoços eram servidos antes das 8h e o jantar às 18h, o que fazia com que os utentes ficassem demasiadas horas sem ingerir quaisquer alimentos. “A maioria dos utentes é deitada cerca das 17h e faz o jantar na cama”, escreveram ainda. Nesta altura já a PSP tinha constatado que havia utentes que eram obrigados a levantarem-se às 5h para serem lavados – embora apenas tomassem banho uma vez por semana.

Mesmo assim, um juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa acedeu ao pedido da proprietária para reabrir o lar, por entender que o seu fecho a prejudicava não só a ela como os escassos empregados que ali trabalhavam, os próprios idosos e respectivas famílias. A Segurança Social não recorreu da decisão e o Luz dos Pastorinhos voltou a acolher utentes no final do Verão de 2013. Nunca mais foi inspeccionado. Porquê? O PÚBLICO tem vindo a colocar repetidamente ao Ministério da Segurança Social, ao longo do último mês, várias questões sobre a matéria, mas nunca teve resposta.

Após muitas insistências e a invocação da lei de acesso aos documentos administrativos, a tutela acabou por disponibilizar o relatório da última inspecção ao lar, onde morreram, entre 2011 e Março de 2012, seis utentes. Uma dessas pessoas morreu depois de cair da cama e ficar com hematomas na cara e no corpo. Segundo o despacho de acusação do processo agora em julgamento, não chegou a ser vista por nenhum médico.

Doentes vivos chegavam a dormir ao lado de cadáveres, conta funcionária
O julgamento da proprietária do lar prosseguiu esta quarta-feira, com a principal testemunha da acusação, uma funcionária que ali prestou serviço entre 2008 e 2012, a descrever qual era o procedimento seguido quando morria um idoso durante a noite. Alexandrina da Silva explicou que era mantido na cama até de manhã, porque ela, que era a única empregada que tomava conta dos utentes distribuídos por dois andares durante a noite, não estava autorizada a chamar os bombeiros ou uma ambulância, nem a incomodar a directora do lar no período nocturno. “Às vezes alguns utentes do mesmo quarto apercebiam-se da morte, mas ficavam caladinhos. Eu dizia-lhes que estava tudo bem e eles fingiam acreditar”. A hora oficial do óbito “era inventada”, por forma a criar a ideia de que tinha ocorrido demasiado tarde para pedir auxílio.

Durante longas horas, e por vezes com a voz embargada, a ajudante do lar contou como os idosos eram “tratados como animais”, e como ficavam inquietos durante a noite, “com o desespero da fome”. Alexandrina da Silva diz que chegava a comprar-lhes comida às escondidas da directora e proprietária: “Levava-lhes pães de leite, bolachas e leite com chocolate, porque muita daquela agitação era fome”.

Também idosa e debilitada, a proprietária do estabelecimento negou, na primeira sessão do julgamento, todas as acusações de que é alvo. As fotos tiradas pela ex-funcionária de idosos caídos no chão durante a noite, sujos e com feridas, alega serem nada mais do que encenações: garante que Alexandrina da Silva queria que lhe aumentasse o salário e que se vingou desta forma quando não o conseguiu.

Alguns dos factos relatados parecem, porém, não ser muito difíceis de comprovar, como o surto de sarna que, segundo a funcionária, atingiu não só utentes como os empregados do lar. “Fiquei cheia de sarna”, recordou. A solução encontrada foi lavar os idosos “com vinagre, álcool e lixívia”.

“A lixívia era-lhes esfregada pura no corpo. Uma utente que não queria levou umas chapadas para ficar quieta”, prosseguiu a testemunha. O resultado do tratamento não foi brilhante: “Aquilo coçava, queimava”. A ida de uma idosa ao médico, por iniciativa da filha, fez com que tivessem mudado para um tratamento mais convencional.

As quedas das camas durante a noite eram, segundo garantiu, frequentes. Como a funcionária estava sozinha, muitas vezes não conseguia levantar os idosos e voltar a colocá-los na cama. Ficavam a dormir no chão frio, porque os dois aquecedores a óleo existentes no lar “só eram ligados pouco antes da hora das visitas, para os familiares dos idosos pensarem que a casa estava sempre quentinha”. Alexandrina da Silva conta que durante a noite usava os aparelhos à socapa, que no entender da direcção do lar “gastavam muita energia”. Terá sido numa destas quedas que uma utente partiu o fémur: “Caiu da cama e rastejou até à porta, a gritar e a gemer”. A proprietária da Luz dos Pastorinhos dizia-lhe para não se preocupar com este tipo de acidentes, relatou a testemunha: que lhes pusesse um cobertor por cima quando não os conseguisse levantar.

O depoimento da ex-funcionária prossegue no próximo dia 16 de Março.

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