A seis meses dos Jogos Olímpicos, o Rio pergunta: Valeu a pena?
Estes não são os Jogos que o Brasil imaginou em 2009. “Nunca houve um caso de um país em crise que hospedasse os Jogos Olímpicos. É a primeira vez”, diz um especialista olímpico.
Para chegar ao Parque Olímpico, o epicentro dos Jogos no Rio de Janeiro que está a ser construído no final da Barra da Tijuca, na zona Oeste da cidade, demora-se quase uma hora de carro – isto, num dia de trânsito bom e dependendo do horário. A maior parte dos cariocas ainda não viu o Parque Olímpico e as suas arenas desportivas – 97% concluídas, segundo a autarquia – porque a maior parte dos cariocas não tem um motivo para ir parar tão longe. Para uma cidade que está a seis meses de sediar os primeiros Jogos Olímpicos da América do Sul – o único continente que faltava – e de ter os olhos do mundo postos sobre si entre 5 e 21 de Agosto, não se fala muito da competição no Rio. Para boa parte da população, nos últimos anos, os Jogos têm sido sinónimo de engarrafamento e estaleiros de obras à porta de casa ou perto do trabalho.
As vendas de bilhetes para as provas têm sido tímidas e só na semana passada alcançaram metade dos cinco milhões disponíveis para o público brasileiro, apesar de os organizadores garantirem que os preços são equivalentes aos dos Jogos de Sydney, há 16 anos. E apesar desse “tempero brasileiro”, como diz Donovan Ferreti, director de ingressos do Comité Organizador do Rio-2016, que é a opção de pagamento a prestações. “Colocámos para venda 3,8 milhões de bilhetes abaixo dos 30 dólares (27 euros). E você pode comprar os bilhetes em quatro prestações. Essa é a primeira vez nos Jogos que você pode comprar a prazo. Se comprar um bilhete de 40 dólares (36 euros), você paga 10 dólares (9 euros) por mês”, explica ao PÚBLICO Mário Andrada, director de comunicação do Rio-2016.
Os organizadores têm procurado relativizar o ritmo lento das vendas de bilhetes domésticos dizendo que os brasileiros têm o hábito de “comprar na última hora”, mas Mário Andrada reconhece “não é fácil vender tickets no meio dessa crise”. O Brasil tem tido muito com que se preocupar: a pior recessão económica em décadas, combinando queda acentuada do PIB, subida do desemprego, desvalorização do real, inflação elevada, e uma crise política e governativa que está a paralisar o funcionamento do país.
“Essa ausência de ânimo, de um engajamento com o projecto olímpico e os Jogos pode ser explicada porque a sociedade está atravessada por essa conjuntura de crise económica, de crise política”, resume Fernanda Sánchez, professora de urbanismo na Universidade Federal Fluminense e co-autora de um livro sobre a Copa Mundial de Futebol no Rio em 2014. “Por mais que haja muito marketing em torno dos Jogos, ele não é poderoso o suficiente a ponto de disputar as mentes e os corações com a crise que está a ser sentida pelas pessoas.”
O contraste com o momento em que o Rio ganhou o direito de organizar os Jogos, em Outubro de 2009 – depois de três tentativas anteriores fracassadas – não podia ser maior. O Brasil era a 10.ª economia do mundo e previa-se que seria a 5.ª em 2016. “Nossa força económica traz a certeza que podemos ter os Jogos Olímpicos", declarou na altura o presidente do Banco Central do Brasil, Henrique Meirelles. Lula chorou. Foi decretado feriado para a função pública no Rio de Janeiro. A praia de Copacabana encheu para assistir ao anúncio em directo de Copenhaga.
“A cidade viveu uma euforia em relação aos Jogos quando a candidatura foi vitoriosa em 2009 mas era um momento político, social e económico absolutamente diferente. Os Jogos entravam num contexto em que tudo ia bem: a economia ia bem, o pré-sal [a descoberta de reservas de petróleo no litoral brasileiro] anunciava um momento de grande desenvolvimento para o Rio de Janeiro e para a indústria petroquímica. E a celebração do maior mega-evento desportivo nesse contexto tinha tudo a ver e esperava-se muito dele. Agora tudo desandou”, diz a professora de urbanismo.
Julia Michaels, uma norte-americana de Boston que vive há mais de 30 anos no Brasil e que está a escrever um livro sobre o Rio, lembra: “Em 2014 a economia começa a andar mal. Os governos negam isso, escondem. Começam a surgir as evidências de corrupção, a Lava Jato... Isso atingiu o Rio como um soco no estômago. A Petrobras está aqui. A economia estadual depende enormemente do sector de petróleo e gás. Para você ter uma ideia, nos anos de boom, quando se está torrando o dinheiro do petróleo, dos royalties, o maior grupo de expatriados no Rio era da Noruega. Tinha muita gente do Texas também”, ri-se. “Havia vários expatriados. Agora todo o mundo foi embora, acabou. Esse quadro está realmente afectando o ânimo das Olimpíadas.”
Fernanda Sánchez acredita que “se a gente fizesse a mesma sondagem em 2009 e hoje sobre os Jogos, o resultado em termos de opinião pública ia ser bem diferente. Muitos grupos sociais iam questionar: será que valeu a pena?”
Ver o Rio gastar 38 mil milhões de reais (10 mil milhões de euros) nos Jogos custa mais quando os hospitais públicos estão a recusar pacientes por falta de recursos ou quando os cortes orçamentais nas universidades levam à interrupção das actividades académicas. “Porque está-se colocando dinheiro nos Jogos que se podia colocar em outras áreas prioritárias”, nota Lamartine da Costa, especialista olímpico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
“Nunca houve um caso de um país em crise que hospedasse os Jogos Olímpicos. É a primeira vez. Os Jogos Olímpicos sempre foram ligados a países ou cidades que estão em ascensão”, diz.
Como se não bastasse, os organizadores do Rio-2016 têm uma nova crise em mãos: o vírus zika, transmitido por picadas do mosquito Aedes aegypti, para o qual não existe vacina nem terapia disponíveis, e que é apontado como o responsável pelo aumento atípico de recém-nascidos com malformação cerebral. O Brasil é visto como o ponto de origem de uma epidemia que atingiu praticamente todo o continente americano e que nas últimas duas semanas fez soar os alarmes internacionais.
“É uma coisa que fica enfeiando a imagem do Brasil”, diz Marceu Vieira, que foi editor de desporto do jornal O Globo durante a Copa. “A seis meses dos Jogos, a gente está convivendo com essa coisa pré-histórica, um mosquito metendo medo em todo o mundo”, declara.
O Comité Organizador do Rio-2016 tem tido de responder a perguntas como: Vão cancelar os Jogos? “Obviamente não tem chance de os Jogos serem cancelados”, diz Mário Andrada ao PÚBLICO. “A gente não pode dizer que está tranquilo porque o zika é um problema muito grave que afecta as mulheres de um modo muito maligno. Mas a gente sabe que o zika não vai ser um problema durante os Jogos. Primeiro porque os Jogos acontecem no Inverno [brasileiro] e a incidência de infecção no Inverno é baixíssima. Tem pouca chuva e, então, tem pouco mosquito. A nossa segunda aposta é a pressão mundial: a partir do momento em que a Organização Mundial de Saúde declara que é uma epidemia que cresce de forma explosiva, entram em campo vários factores. Tem crédito, tem mobilização, tem ajuda. O governo praticamente multiplicou por dez vezes o número de agentes que estão actuando no combate ao zika, principalmente no Nordeste. O Rio é um universo um pouco mais controlado. Vamos distribuir repelentes para os atletas, vamos distribuir protector solar com repelente.” São esperados 10.500 atletas no Rio em Agosto, e outros 4500 nos Jogos Paralímpicos, entre 7 e 18 de Setembro.
Apesar de todo este clima depressivo, o director de comunicação do Rio-2016 acredita que os bilhetes para os Jogos Olímpicos vão esgotar em Abril ou, “o mais tardar, começo de Maio”. Há “uma geração icónica de atletas” que vai fazer os últimos Jogos no Rio. “Usain Bolt, Roger Federer, Rafael Nadal, Michael Phelps. Esses caras estão na última”, diz.
As entradas para a cerimónia de abertura foram as que se venderam mais rapidamente – e já não estão disponíveis. Futebol, basquetebol, vóleibol, atletismo e andebol são os desportos mais vendidos.
Marceu Vieira não comprou bilhetes para nenhuma prova. “Vou ver pela televisão. Nem parei para pensar, para falar a verdade. Os desportos olímpicos não são muito populares. Não atrai aquela paixão... Ninguém deixa de trabalhar para ver uma final de atletismo se tiver um atleta brasileiro. O país pára para ver um jogo de futebol do Brasil na Copa. Mas para ver a final do nosso melhor nadador, o [César] Cielo [medalha de Ouro em Pequim, em 2008], não. Quer dizer, ninguém vai deixar de trabalhar. É uma coisa mais tranquila, não envolve briga de torcida. Futebol não, as pessoas dão a vida por isso.”