Justiça mantém aberto há dois anos lar considerado perigoso para os idosos

Tribunal permitiu reabertura de estabelecimento fechado pela Segurança Social. Proprietária do lar responde no banco dos réus por maus tratos aos utentes, que nega.

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Paulo Pimenta

Banhos com lixívia e vinagre. Frio e fome. Feridas e pneumonias. A proprietária de um lar de idosos de Lisboa começou esta quarta-feira a responder em tribunal por maus tratos aos utentes. Situado no centro de Lisboa, na Avenida 5 de Outubro, o estabelecimento continua, porém, a funcionar: o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa autorizou a sua reabertura em Setembro de 2013, depois de a Segurança Social ter decretado o seu encerramento por o considerar perigoso para quem lá passava os seus últimos tempos de vida.

Hoje também ela idosa e debilitada, Pureza Rodrigues Pais tinha à sua guarda duas dezenas e meia de pessoas, algumas das quais nascidas ainda durante a I Guerra Mundial. Pagavam-lhe entre 1500 e 1600 euros mensais em troca de cuidados. Uma denúncia feita às autoridades por parte de uma empregada a quem se recusou a aumentar o salário valeu-lhe uma inspecção que determinou, em 2012, o fecho imediato destes dois andares interligados entre si num prédio no centro da cidade, baptizados como Luz dos Pastorinhos. Segundo a Segurança Social, o lar apresentava deficiências graves ao nível das condições de instalação, segurança, funcionamento, salubridade, higiene e conforto, o que punha em risco a saúde e a integridade dos utentes.

Estes argumentos não comoveram, porém, o juiz encarregue de analisar uma providência cautelar interposta por Pureza Rodrigues Pais no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa. A dona do estabelecimento alegou que a empregada descontente que desencadeou todo o processo havia encenado um cenário de atrocidades destinado a prejudicá-la, colocando os idosos em situações degradantes para os poder fotografar e entregar as provas às autoridades. Disse ainda que o fecho da Luz dos Pastorinhos a lançaria a si própria na miséria e aos seus empregados no desemprego. Este último argumento surtiu efeito junto do juiz, na opinião do qual os prejuízos que provocaria a cessação de actividade a Pureza Pais seriam de difícil reparação. Para fundamentar a reabertura da casa, o magistrado lançou mão do facto de a Segurança Social ter reconhecido que o encerramento causaria transtornos aos idosos e respectivas famílias, bem como aos empregados – tendo, porém, descartado aquilo que os serviços do Estado encaravam como um mal maior, o perigo de vida dos utentes do lar.

“Não ficou provado que esteja em risco qualquer direito dos utentes, nomeadamente a sua saúde, integridade e segurança”, escreveu o juiz Quintino Lopes Ferreira, remetendo para o processo-crime, que entretanto se encontrava já em fase de instrução, uma conclusão definitiva sobre as verdadeiras condições de funcionamento da Luz dos Pastorinhos. Graças a esta decisão, o estabelecimento voltou assim a receber idosos no final de 2013. O PÚBLICO tentou saber junto do Ministério da Segurança Social por que razão não recorreu este da decisão de reabertura do lar, uma vez que entendia que os idosos se encontravam em risco, mas não obteve nenhuma explicação. Sem resposta ficou também a pergunta se lar em questão funciona normalmente e se tem sido fiscalizado, desde a reabertura. A tutela limitou-se a confirmar que, na sequência da decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, “o Instituto da Segurança Social suspendeu o acto de encerramento administrativo e de caducidade de licença de funcionamento do estabelecimento”.

Pureza Pais não se intimidou com a sucessão de atrocidades com que foi confrontada esta quarta-feira em tribunal. Chegou mesmo a dormitar, segundo o seu advogado por andar medicada para a depressão, e negou tudo, tendo remetido culpas para a empregada, que “queria dinheiro”.

Mas segundo a acusação, quem ultrapassou todas as regras pelo lucro foi a arguida, que mantinha os utentes do lar subnutridos e os obrigava a jantar às 17h, muitas vezes já nas camas. Se comessem pouco e bebessem menos ainda incomodariam menos vezes durante e noite nas idas ao wc e sujariam menos fraldas, deduz o Ministério Público. “Devido à fome que sentiam, por vezes ficavam desorientados e caíam da cama, dormindo no chão o resto da noite”, descreve também a acusação. Para isso não acontecer passaram a dormir amarrados às camas. O Ministério Público assegura que passavam frio por não terem cobertores suficientes nem aparelhos de aquecimento adequados. Ali colocados pela Misericórdia de Lisboa, nalguns deles foram encontradas escaras e tecidos já necróticos. Houve pelo menos uma broncopneumonia que redundou em morte. O tribunal irá tentar apurar se se deveu à falta de condições do lar.

Com formação insuficiente para cuidar de pessoas desta faixa etária, o pessoal do lar fazia os idosos levantarem-se às 5h, para lhes dar banho. “Eram ensaboados com sabão azul e branco  e, muitas vezes, com vinagre ou detergente da loiça”, refere ainda o Ministério Público. Uma mulher que se recusou a ser lavada com lixívia terá sido agredida com “várias chapadas”.

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