A estratégia de um governo que quer ir além da política de rendimentos
António Costa será julgado pela "solidez e durabilidade" do acordo com os partidos de esquerda. Mas promete "reformas" que vão além da "urgência" das Finanças.
Quando apresentou as suas ideias, como candidato à liderança do PS, em Julho do ano passado, António Costa disse uma frase que pouca gente levou a sério. Na altura, como agora, os temas centrais do debate político eram, sobretudo, orçamentais, de finanças públicas: a trajectória do défice, a inversão da curva ascendente da dívida. O candidato pouco falou disso e, quando confrontado com a falha, respondeu com uma ideia que parecia uma boutade: "Isso é uma questão instrumental, não é estratégica."
E continuou a sua argumentação: “Há quem entenda que o problema começou na dívida. Eu entendo que o problema começou na falta de competitividade da nossa economia e na dificuldade que temos tido em adaptar-nos ao choque que no início do século tivemos com a entrada no euro.”
Agora, é precisamente essa ideia que nos ajuda a perceber um incomum afastamento do ministro das Finanças, Mário Centeno, do "pódio" da hierarquia governamental. As Finanças não são o segundo, nem o terceiro ministério mais importante no executivo, como foram com Durão Barroso, José Sócrates ou Pedro Passos Coelho. O corte com esse passado recente foi assumido, e sublinhado: "A estrutura do Governo (...) é também expressão desta visão estratégica."
Costa repetiu a mesma ideia na tomada de posse do XXI Governo, na passada quinta-feira, no Palácio da Ajuda. "O aumento e protecção do rendimento disponível das famílias, o alívio da asfixia fiscal da classe média, o desendividamento e condições de investimento das empresas, o combate à pobreza, a garantia de serviços e bens públicos essenciais são necessidades do tempo da urgência social e económica, condição de relançamento da economia e da criação de emprego", começou por dizer.
Mas há um "mas"... "A satisfação das necessidades do país não se basta neste tempo da urgência, antes exigindo a continuidade que permite enfrentar os bloqueios estruturais à competitividade, que tanto têm dificultado a adaptação da economia nacional ao novo quadro resultante da globalização, do alargamento da UE e da participação no euro."
Essas serão as duas tarefas prioritárias do seu número dois, Augusto Santos Silva (Negócios Estrangeiros) e Maria Manuel Letão Marques (Presidência e Modernização Administrativa).
"As reformas que temos de fazer são outras e exigem persistência e continuidade no investimento no conhecimento e na inovação, na modernização do tecido empresarial e da administração pública, na valorização do território e dos seus recursos, na promoção da saúde, no reforço da coesão e na redução das desigualdades", adiantou o novo primeiro-ministro.
Estas são as linhas principais do documento que apresentou como candidato à liderança do PS, que o partido viria a aprovar como moção estratégica, e que Costa lembrou, perante Cavaco Silva.
Aprofundar os acordos à esquerda
Mas as circunstâncias que o levaram a São Bento parecem contradizer estas palavras. Os acordos que assinou com o BE, o PCP e o PEV incidem, sobretudo, na política de rendimentos. O principal escrutínio que se fez da inédita convergência parlamentar da esquerda também privilegia a vertente financeira. O Presidente da República lembrou-o, a Costa, na cerimónia do Palácio da Ajuda: "O superior interesse nacional é muito claro: devemos consolidar a trajectória de crescimento económico e preservar a credibilidade externa. Não podemos regredir num caminho que foi árduo, em que foram pedidos muitos sacrifícios aos portugueses."
O primeiro-ministro, que participou neste domingo no seu primeiro Conselho Europeu (sobre refugiados) e que participa, nesta segunda-feira, em Paris, na Cimeira do Clima, costuma dizer que os temas financeiros são centrais num "tempo de urgência", que não deve esgotar o resto. O "tempo de continuidade" em que se jogam as matérias decisivas: "Valorizar os recursos; modernizar a actividade económica e o Estado; investir na cultura e na ciência; reforçar a coesão social."
Não há nada neste enunciado que seja, à partida, incoompatível com os programas dos seus parceiros à esquerda. Em muitas das medidas concretas que constam do documento que a Assembleia da República vai apreciar a partir de quarta-feira, o Governo propõe-se fazer na Ciência, na Educação, na Saúde e na Cultura muito do que o BE, o PCP e o PEV também defendem.
Porém, Costa chama a esta estratégia uma "agenda para a década" por uma razão: é um conjunto de ideias que não se esgotam nos quatro anos de uma legislatura. Para isso, idealmente, Costa contaria, pelo menos, com a disponibilidade de PSD e CDS para discutir um conjunto de políticas que pudessem resistir à "alternância".
"Só assim será duradouramente sustentável um novo impulso para a convergência com a União Europeia", afirmou o primeiro-ministro.
João Soares, Manuel Heitor, Tiago Brandão Rodrigues e Ana Paula Vitorino têm, neste Governo, as pastas que exigem esse esforço de tornar consensual e durável um conjunto de investimentos.
Costa não se cansa de chamar a atenção para a "centralidade" atribuída à Cultura, à Ciência, à Educação e à política do Mar. Será, sobretudo, nessas áreas que o esforço negocial com todos os partidos se revelará mais decisivo.
Não só nas reuniões que, a partir de agora, juntarão, às terças-feiras, as lideranças parlamentares de PS, BE, PCP e PEV com a presença assídua do secretário e Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos. É nestas áreas que o Governo também tentará pôr fim à crispação que subsiste entre o PS e os partidos à sua direita.
Uma das provas de fogo surgirá já nos próximos tempos. A forma como o Governo lidar com a situação das contas públicas herdada de Maria Luís Albuquerque poderá marcar o tom do debate político no futuro.
A frente europeia
Um dos objectivos centrais de António Costa, para que tudo o resto possa funcionar, é convencer a Comissão Europeia de que "virar a página" da austeridade em Portugal pode ser feito sem que ninguém - nem as instituições europeias, nem o Governo português - percam a face.
Augusto Santos Silva e Margarida Marques, a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, têm a dupla tarefa de tranquilizar os parceiros europeus quanto às intenções, "moderadas", do novo Governo de Lisboa, ao mesmo tempo que tentam aproveitar os novos ventos que Juncker inaugurou, com o seu plano de investimentos.
Costa, também aqui, não parece ter mudado de opinião: "É claro que parte importante da solução dos nossos problemas exige uma mudança na Europa. É necessário corrigir as deficiências que a crise evidenciou da união monetária, compensar os efeitos assimétricos que o euro tem nas diferentes economias, recuperar os danos sociais e económicos provocados pelo ajustamento, encontrar um novo equilíbrio na gestão dos nossos compromissos que favoreça o crescimento sustentável, a criação de emprego, o controlo do défice e a redução da dívida." Isto era o que dizia quando se candidatou, num artigo de opinião, no PÚBLICO, de 26 de Julho de 2014.
No Programa do Governo, o compromisso é o mesmo: "A atitude das autoridades portuguesas tem de ser activa e empenhada, fazendo-se ouvir em Bruxelas, defendendo em Bruxelas os nossos interesses próprios e contribuindo também para a mudança ao nível europeu em favor da economia e do emprego."
Mesmo que esta estratégia seja vista com bom olhos em várias outras capitais europeias, será talvez a mais incerta e a mais difícil das negociações que Costa tem pela frente.
Se a conseguir ultrapassar, talvez a expressão "um tempo novo", que prometeu no discurso de tomada de posse, faça sentido. "É essa, verdadeiramente, a nossa ambição", garantiu.
Mesmo que o não consiga, mais fácil parece ser a promessa que deixou aos seus ministros e secretários de Estado, na sala dos Embaixadores, no Palácio da Ajuda: "Foi para um projecto entusiasmante que vos convidei."