Morreu José Fonseca e Costa, o cineasta contador de histórias
O realizador de Kilas, o Mau da Fita (1981), Sem Sombra de Pecado (1983) ou Balada da Praia dos Cães (1986) tinha 82 anos. Ao longo dos anos tentou sempre fazer cinema que contasse histórias e que chegasse ao público, sem abdicar da qualidade.
O realizador de cinema português José Fonseca e Costa morreu este domingo, de manhã, no hospital de Santa Maria, em Lisboa, vítima de pneumonia, na sequência de uma leucemia. Foi o amigo e também cineasta António-Pedro Vasconcelos quem confirmou ao PÚBLICO o óbito. O funeral realiza-se esta terça-feira, às 15h, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa.
José Fonseca e Costa, símbolo da geração do Novo Cinema nos anos 1970 e realizador de filmes como Kilas, o Mau da Fita (1981), Sem Sombra de Pecado (1983, escrito com Mário de Carvalho e David Mourão-Ferreira), Balada da Praia dos Cães (1986, adaptação do romance de José Cardoso Pires) ou Cinco Dias, Cinco Noites (1996, adaptação da novela de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal), tinha 82 anos, e encontrava-se a filmar um novo filme, com produção de Paulo Branco, uma adaptação de Axilas, um conto do escritor brasileiro Rubem Fonseca, com argumento de Mário Botequilha.
"O filme está três quartos filmado e ele só parou quando já não tinha mais forças", confessa Paulo Branco ao PÚBLICO. "Inclusive ele deixou-me indicações de como o filme deve ser concluído e o que eu vi do material filmado é absolutamente surpreendente." Da sua obra global, Paulo Branco destaca o papel decisivo que ele, e outras figuras da geração de 60 e 70, tiveram no relançamento do cinema em Portugal, e também o facto de ter criado "filmes marcantes que tentaram chegar ao público e conseguiram muitos deles. Para ele o argumento era fundamental, contar a história era central, e daí também se ter apoiado em figuras como o David Mourão-Ferreira, o Mário de Carvalho ou José Cardoso Pires."
Para António-Pedro Vasconcelos, ele foi um dos últimos grandes cineastas do "Novo Cinema português e um dos mais importantes", acabando "vítima de um sistema perverso de concursos e de júris que não o deixaram filmar durante anos. A história do cinema português é a história dos filmes que não se fizeram. Estou chocado pela morte de um amigo e de um cineasta com grande obra. Tenho pena que não tenho conseguido terminar este seu novo filme. Ao que sei está apenas um terço por fazer. É uma grande perda."
O cineasta acabou por ser muito relevante nos anos 1980, principalmente pelo sucesso de Kilas, o Mau da Fita, oferecendo a Mário Viegas um papel inesquecível, num projecto que foi alimentado por uma utopia: fazer um filme de grande público português cuidando amorosamente do cinema. Nos seus filmes, o argumento era fundamental. Era um contador de histórias. Até 1988, com Sem sombra de pecado (também com Mário Viegas, ao lado de Victoria Abril), A Balada da Praia dos Cães (que deu a Raul Solnado um dos seus mais notáveis papéis dramáticos) e A Mulher do Próximo (que "recuperou" Vergílio Teixeira e Carmen Dolores), o realizador foi construindo como sabia e como podia um "cinema do meio". A Mulher do Próximo é o tipo de tragicomédia sofisticada que hoje parece completamente impossível e que, numa perspectiva puramente subjectiva, é talvez o melhor filme na obra do realizador.
O cineasta tinha uma ideia de cinema, acreditava na possibilidade, mesmo num país "sem indústria" como Portugal, de um cinema popular mas não popularucho, de um cinema vocacionado para um "grande público" mas que não deixasse, por isso, de conservar um grau de seriedade intelectual ou, simplesmente, cinematográfica. Era, se a quisermos ver assim, uma ideia provavelmente trazida da sua juventude, daqueles anos 50 em que, se calhar pela última vez na história, os maiores autores do cinema europeu (por exemplo os italianos como Fellini ou Antonioni) trabalhavam a sua idiossincrasia autorística na fronteira com os modos do cinema popular, integrados, melhor ou pior, nos caminhos do circuito comercial.
Os resultados terão oscilado, Fonseca teve momentos mais altos e momentos mais baixos, mas durante décadas foi fiel a esse princípio de conciliação entre apelo popular e um mínimo de seriedade - e honra lhe seja feita: nunca foi "xunga", nunca foi "pimba", nem se detecta na sua obra um filme comercialmente oportunista. Fonseca e Costa vinha da geração de cinéfilos e futuros realizadores que deu corpo ao "cinema novo português", mas cedo se tornou uma figura algo dissidente - até por uma questão de gostos. Uma vez contava como, nas tertúlias do café Vává (lugar mítico para a cinefilia dessa geração), era olhado de soslaio pela sua admiração por Antonioni, até ao dia em que os Cahiers du Cinéma fizeram uma capa com o cineasta italiano e ele pôde entrar, triunfante, exibindo a revista aos parceiros de tertúlia.
A influência Antonioniana é particularmente visível na sua primeira longa -metragem, O Recado, no princípio dos anos 70, ao mesmo tempo um dos últimos filmes do "cinema novo" e um dos primeiros a sugerir, ou a "adivinhar", a iminente queda do regime. Quando o regime caiu, naqueles primeiros tempos de liberdade eufórica e revolucionária, Fonseca atirou-se ao projecto mais "experimental" da sua obra, Os Demónios de Alcácer Quibir, reflexão sobre o passado e o presente históricos, a cruzar a musicalidade (as canções de Sérgio Godinho) e o artifício teatral com um trabalho de montagem que pretendia colher directamente nos clássicos revolucionários soviéticos, Vertov ou Eisenstein.
É depois disso que vem Kilas, o Mau da Fita, cujo lendário sucesso de público abriu a porta para a melhor década da obra de Fonseca e Costa, os anos 80. Para a actriz Lia Gama, protagonista de Kilas, o Mau da Fita, este foi um filme que lhe marcou a carreira e deixou-a para sempre ligada ao realizador por causa da personagem que interpretou, Pepsi-Rita. “Mas fiz muito mais cinema”, diz a actriz ao PÚBLICO, nomeadamente Sem Sombra de Pecado, também com Fonseca e Costa e Mário Viegas.“O Kilas foi muito importante para nós, teve um êxito enorme. Foi feito com muitas dificuldades – e essa história está mais do que contada - tendo sido interrompido porque não havia dinheiro para o acabar. Mas o resultado final foi extraordinário e na década de 80 foi realmente uma pedrada no charco”, afirma.
“Morreu um grande cineasta", diz ela, "e para isso veja-se Os Demónios de Alcácer Quibir e toda a sua obra posterior. É a perda de um cineasta muito importante no panorama do cinema português que vem com o Cinema Novo e com a formação do Centro Português de Cinema. Muitas vezes, dadas as circunstâncias com que se trabalha em Portugal, teve interrupções infelizes, devia ter filmado muito mais, mas morre-me fundamentalmente um grande amigo.”
Quem também esteve directamente ligado a Kilas foi o cantor Sérgio Godinho. Pouco tempo depois de ter chegado a Portugal, em 1975, José Fonseca e Costa fez-lhe “uma proposta que era algo de novo e de estimulante”: ser actor no filme Os Demónios de Alcácer Quibir, interpretando um saltimbanco que tocava, e fazer canções originais para o filme.
“Foi uma aventura estimulante porque vivemos quase um mês perto de Serpa, no Alentejo, e essas aventuras acabam por ser muito envolventes. O ambiente foi de facto muito bom. E depois o Zé Fonseca apareceu-me com outro desafio surpreendente: queria fazer um filme chamado Kilas, tinha a personagem – um malandro de Lisboa cheio de esquemas - e convidou-me para fazer o argumento com ele”, conta Sérgio Godinho ao PÚBLICO, explicando que depois de o filme estar interrompido um ano acabou por entrar um terceiro argumentista, o escritor brasileiro Tabajara Ruas. “Foi um trabalho muito próximo em que fomos desenvolvendo toda a trama e personagens e depois houve o desafio de ele me convidar para fazer a banda sonora e as canções que são cantadas no filme pela Lia Gama”, diz o compositor referindo-se ao Fado do Kilas e A Balada da Rita.
“O Zé Fonseca, ao dar a confiança a alguém que não tinha cartas dadas - apesar de termos trabalhado em Os Demónios de Alcácer Quibir – foi de enorme generosidade”, diz Sérgio Godinho para quem o Kilas foi um trabalho de conjunto, que lhe deu enorme prazer. "Respeitávamo-nos mutuamente”, diz Sérgio Godinho. "José Fonseca e Costa foi uma pessoa valiosa no meu percurso profissional e criativo e um grande amigo”.
O crítico e historiador de cinema Jorge Leitão Ramos, que ultima uma biografia sobre José Fonseca e Costa, diz que ele foi o único cineasta da sua geração "a conseguir conciliar a vontade do público com o facto de querer fazer um cinema de autor. Da geração do Cinema Novo uns ficaram acantonados no cinema de autor, com pouco público, e existiram outros que se renderam à bilheteira. Ele conseguiu as duas coisas. Nunca fez filmes que não fossem de autor, conseguindo apesar disso obter alguns êxitos históricos de bilheteira.”
José Fonseca e Costa nasceu no Huambo, em Angola, a 27 de Junho de 1933, e mudou-se para Lisboa em 1945. Entre 1951 e 1955 frequentou o curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que não terminou para se dedicar às actividades cinematográficas. Membro da direcção do Cineclube Imagem, fez crítica de cinema nas revistas Imagem e Seara Nova. Traduziu para português livros de teoria cinematográfica da autoria de Eisenstein, Guido Aristarco e alguns romances, entre eles Il Compagno de Cesare Pavese e Passione di Rosa de Alba de Cespedes.
Concorrente ao lugar de assistente de realização da RTP (à data da sua fundação) foi impedido de entrar nos quadros da empresa por interferência da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), embora tenha ficado classificado em primeiro lugar. Em 1960 foi-lhe recusada uma bolsa de estudo, solicitada ao Fundo do Cinema Nacional, para frequência de um curso de cinema no estrangeiro e novamente por informação da PIDE, em cujas prisões foi encarcerado por atividades de oposição política à ditadura.
Iniciou a sua formação profissional estagiando em Itália, por volta de 1961, onde trabalhou com Michelangelo Antonioni no filme L’Eclisse (O Eclipse). De regresso a Portugal, em 1964, produziu e dirigiu centenas de filmes publicitários (era amigo de Alexandre O'Neill) e alguns documentários industriais e turísticos, actividade que interrompeu a partir dos anos 1970, quando dirigiu o seu primeiro filme de ficção (A Metafísica do Chocolate, de 1967). Foi sócio fundador e dirigente, nos anos 1960, do Centro Português de Cinema e, mais recentemente, da Associação de Realizadores de Cinema e Audiovisuais, de cuja primeira direcção foi presidente.
Depois de Cinco Dias, Cinco Noites (1996), filme premiado no Festival de Gramado, nos Globos de Ouro em Portugal e seleccionado para o Montreal World Film Festival, Fonseca e Costa assinou ainda O Fascínio (2003) e Viúva Rica Solteira Não Fica (2006). A 9 de Outubro de 2014, a Academia Portuguesa de Cinema atribuiu-lhe o prémio de carreira.