Um Sakharov contra a "tortura brutal" com que Riad puniu Badawi

Parlamento Europeu descreve o blogger saudita como um "homem exemplar" que "“exprimiu corajosamente as suas ideias". Prémio é uma nova farpa ao aliado "essencial" do Ocidente no Médio Oriente.

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Raif Badawi Reuters
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Imagem de uma manifestação a favor da libertação de Badawi na Cidade do México, em Fevereiro deste ano Edgard Garrido/Reuters

Passaram dez meses desde que Raif Badawi foi levado, acorrentado, para uma praça no coração de Jidah. “Um polícia aproximou-se por trás com uma enorme vara e começou a bater-lhe. Raif levantou a cabeça para o céu, fechou os olhos e arqueou as costas. Estava em silêncio, mas podíamos ver pela sua cara e pelo seu corpo que estava em grande sofrimento”, contou uma testemunha à Amnistia Internacional. Foram as primeiras 50 chicotadas das mil a que foi condenado por uma Arábia Saudita que vê insultos ao islão em escritos a favor do secularismo – um “acto de tortura brutal” a que o Parlamento Europeu respondeu nesta quinta-feira atribuindo ao blogger saudita o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento.

Badawi não voltou a sair da prisão desde aquela tarde de 9 de Janeiro, mas há apenas dois dias a mulher, Ensaf Haidar, dizia que a justiça saudita tinha dado autorização para que o castigo fosse retomado, desta vez dentro dos muros da cadeia onde está preso desde 2012. Primeiro por razões de saúde, depois por motivos não especificados, as autoridades foram adiando as sessões semanais de tortura – 20 ao todo –, numa espera que se tornou ainda mais angustiante desde que, em Junho, o Supremo Tribunal confirmou a sentença, ignorando todo o repúdio internacional e todas as campanhas pela sua libertação.

“Este homem, um homem extremamente bom, um homem exemplar, recebeu uma das penas mais terríveis que existem no seu país”, disse Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu, perante um hemiciclo cheio e que recebeu com uma longa ovação de pé o anúncio do vencedor do mais importante prémio europeu de direitos humanos. Em Fevereiro, os eurodeputados tinham votado uma resolução que condenava o “acto cruel e chocante” da justiça daquele que é o aliado inabalável dos ocidentais na região e um dos grandes compradores das armas fabricadas na Europa.

Nesta quinta-feira, Schulz voltou a pedir ao rei Salman que liberte “imediatamente” Badawi para que ele possa reunir-se à família e estar em Estrasburgo a 16 de Dezembro para receber o prémio. Elogiando um homem que “se bateu pela liberdade de todos os sauditas” e “exprimiu corajosamente as suas ideias”, o líder socialista recordou à Arábia Saudita “que as relações [com a UE] dependem do respeito pelos direitos humanos por parte dos nossos aliados e [neste caso] eles não estão a ser respeitados, estão a ser esmagados”.

No Canadá, onde está exilada com os três filhos pequenos, Haidar disse estar “muito feliz” com esta “mensagem de esperança e de coragem” europeia, uma prova de que o mundo acredita que “Raif não é culpado”. Guy Verhofstadt, líder da bancada liberal, acredita também que Estrasburgo “enviou uma mensagem política e humanitária forte” que Riad não pode ignorar.

Os avisos de Riad
Em Riad, onde a um rei que tentou algumas reformas se seguiu um monarca mais inflexível, não se ouviu qualquer resposta. E as últimas reacções à pressão internacional não auguram boas notícias. Quando, em Março, a Suécia suspendeu um lucrativo acordo de cooperação militar por causa dos atropelos aos direitos humanos, o governo saudita acusou Estocolmo de “flagrante ingerência nos assuntos internos do reino”. Este mês, o embaixador saudita em Londres publicou uma carta no Telegraph avisando que notícias menos positivas e acusações feitas ao país poderiam ter “repercussões potencialmente graves” para a parceria entre os dois países.

E se para os europeus Badawi tem de ser premiado por “exprimir corajosamente as suas ideias”, para a monarquia absolutista, guardiã dos locais sagrados do islão e promotora da interpretação mais radical da fé muçulmana, os seus escritos atacam directamente os pilares do regime.

Através da Rede Liberal Saudita, o blogue que criou em 2010 como plataforma para debater ideias que se calam no espaço público, defendeu o secularismo que permitiu aos europeus “promover o conhecimento, a criatividade e a rebelião”. Criticou a opressão religiosa sobre a liberdade de pensamento, entusiasmou-se com a Primavera Árabe, repudiou a “mentalidade árabe da ditadura e segurança”, ridicularizou os pregadores que nas televisões recusam tudo o que é ocidental. “Os estados baseados na ideologia religiosa não têm nada a não ser o medo de Deus e a inabilidade para lidar com a vida”, escreveu em 2010.

Preso em 2012 foi acusado de, através do seu blogue, ter “insultado o islão”, desrespeitado o rei e violado as leis de ciber-segurança do país. Num primeiro processo, que foi depois anulado, chegou a ser acusado de apostasia (repúdio da fé), crime punível com a pena de morte. Acabou condenado, em Maio de 2014, a mil chicotadas, uma multa de 266 mil dólares, dez anos de prisão seguidos de outros dez em que ficará proibido de viajar – se nada mudar os filhos serão já adultos quando os puder reencontrar. “Ele queria apenas promover o diálogo. A liberdade de expressão, os direitos para as mulheres e para toda a gente é aquilo que sempre o motivou”, garantiu à AFP a mulher, a quem é permitido que fale uma vez por semana com Badawi pelo telefone.

A Amnistia Internacional, que reuniu já mais de um milhão de assinaturas a favor da sua libertação, sublinha que o blogger é um “entre dezenas” de activistas, poetas, pensadores presos por um dos raros países que continua a executar condenados em público, a amputar-lhes as mãos, a chicoteá-los. Um país que condenou à morte, por degolação, Ali al-Nimr e outros dois rapazes xiitas presos em 2012, quando ainda eram menores, por se manifestarem contra o governo. A sua execução foi dada como iminente, fazendo aumentar a pressão sobre os ocidentais que vêem na Arábia Saudita um garante de estabilidade e um aliado "essencial" na luta contra o Estado Islâmico e as suas bárbaras decapitações.

Badawi não irá em Dezembro a Estrasburgo. Mas antes dele também Nelson Mandela, o primeiro galardoado com o prémio europeu, em 1988, ou a líder da oposição birmanesa, nem Aung Suu-Kyi, faltaram à chamada por estarem presos.

 

 

 

 

 

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