Quase 5900 doentes já fizeram os novos tratamentos para a hepatite C

Dia Mundial das Hepatites assinala-se nesta terça-feira, quase seis meses depois do acordo assinado pelo Ministério da Saúde para tratar todos os doentes com hepatite C. Fomos saber como está Paulo e conhecer João.

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Paulo Oliveira ainda está a fazer o tratamento, mas as análises já são negativas Nuno Ferreira Santos

Desde Janeiro e até ao final de Julho, “foram autorizados no total 5870 tratamentos para a hepatite C, dos quais 5420 com os medicamentos Sofosbuvir ou Ledipasvir + Sofosbuvir”, ambos da Gilead, segundo os dados enviados ao PÚBLICO pela Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed). Os que não recebem estes fármacos são tratados com medicamentos inovadores equivalentes que outras farmacêuticas, no âmbito de ensaios, disponibilizaram gratuitamente ao SNS. “Cerca de 3000 tratamentos encontram-se a decorrer, a grande maioria com os dois medicamentos supra mencionados”, acrescentou o Infarmed. Outros já terminaram visto que há casos em que só são necessárias 12 semanas. A esmagadora maioria destas autorizações aconteceram a partir de 6 de Fevereiro.

Paulo Oliveira foi buscar o seu tratamento no início de Maio, mas só termina em Outubro, devido à cirrose causada pelo vírus e ao facto de as tentativas com os medicamentos mais antigos terem falhado. Espera conseguir esquecer o passado. “Com hepatite C, no meu caso, um dia normal de trabalho fica reduzido a quatro horas, porque nas primeiras, até eu conseguir arrancar, sinto-me completamente esgotado. Ter hepatite C é como carregar um telemóvel durante três dias e a bateria ir-se numa hora”, relatava em Janeiro. Agora, as primeiras análises de Paulo vieram negativas, mas ainda é cedo para falar em cura. Está a recuperar, mas o tratamento ainda dificulta que consiga trabalhar normalmente e o desemprego atravessou-se no seu caminho. “O balanço tem sido positivo por parte de todos, mas ainda é cedo para gritarmos vitória, pois ainda estamos quase todos a fazer tratamento”, explica.

Do lado oficial a resposta é a mesma: “Ainda não há resultados quanto aos tratamentos bem-sucedidos, atendendo à conclusão recente dos mesmos”, adiantou o Infarmed. O acordo – que o ministro da Saúde, Paulo Macedo, definiu como “histórico” – previa numa das suas cláusulas que o Serviço Nacional de Saúde só suportasse os custos dos tratamentos que curassem os doentes, uma vez que os ensaios clínicos prometiam resultados próximos dos 100%. A ideia era tratar os cerca de 13 mil doentes identificados em três anos, com uma capacidade anual de 5000 tratamentos, mas o ritmo está a ser superior. O preço final nunca foi divulgado, até porque a confidencialidade era uma das exigências do laboratório. Mas sabe-se que inicialmente chegaram a ser pedidos perto de 48 mil euros e que o preço para Portugal terá ficado pelos 20 mil euros, abaixo do de Espanha, logo depois do debate ter sido acelerado com a morte de uma mulher que esperava pelo medicamento e com um doente a interromper Macedo na Assembleia da República.

A tutela prometeu reforçar o orçamento dos hospitais para aguentarem o aumento da despesa. Aliás, os dados do Infarmed mostram que nos primeiros cinco meses do ano a factura dos hospitais com medicamentos subiu 68 milhões de euros, para 479 milhões, o que representa mais 16,9% – apesar de as quantidades consumidas só terem aumentado 1,3%. Na categoria dos antivíricos (hepatite e VIH/sida) a despesa cresceu 52% em relação ao mesmo período de 2014. Só com a hepatite C o valor disparou em mais 49 milhões de euros.

Paulo Oliveira considera que o seu tratamento chegou demasiado tarde – depois do processo doloroso da morte do pai com um cancro muito agressivo. “O testemunho que vou dar não é muito entusiasmante, pois com a morte do meu pai houve muitos problemas. Claro que recebi o tratamento com agrado, mas não com a felicidade que devia. Chegou tarde e a más horas. O meu pai não estava presente, ele que me deu tanto apoio para conseguir ir à luta”, justifica. Desde a morte do pai que Paulo, com 45 anos, tem tido mais dificuldades em pagar as contas e ajudar a mãe e a mulher. Sente que a saúde se degradou demasiado e que o mercado de trabalho não ajuda. Mesmo assim garante: “Vou em frente e espero um desfecho feliz”.

Mais perto desse final feliz está João. Tem 48 anos e é funcionário público. Foi das poucas centenas de portugueses que conseguiram ter acesso aos tratamentos inovadores antes de Fevereiro. Não esquece a data em que começou os tratamentos: 11 de Dezembro de 2014. E garante que só conseguiu o fármaco, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, porque foi persistente. “Mexi-me. Perguntei, escrevi ao hospital, ao ministro, à administração regional de saúde. Sentia que tinha pouco tempo de vida pela frente. Os outros tratamentos antigos não me fizeram nada. Estava a piorar e na fila para um transplante”, explica. O ano de 2014 foi de “ansiedade” e de internamentos com hemorragias devido a varizes no esófago – um dos efeitos do avanço do vírus da hepatite C.

João já terminou o ciclo de 12 semanas. Meio ano depois do início do caminho as análises continuam negativas. Pouco a pouco ficaram para trás as feridas no corpo, as articulações inchadas e o cansaço excessivo não é tão acentuado. “Sinto-me outra pessoa.” Porém, para trás não ficou ainda o estigma. João não arrisca dar mais dados sobre si, por sentir que, mesmo com o debate e indignação que a hepatite C gerou, “socialmente a doença não é aceite”. Foi inventando justificações ao longo dos anos para os sintomas que a infecção diagnosticada há 20 anos lhe deixou no corpo. A transmissão é feita através de sangue, ou seja, “basicamente de uma eventual transfusão ou de seringas”. A possibilidade de transmissão sexual é diminuta. “É por isso que o estigma é pior do que no VIH”, diz.

Paulo e João fazem (ou faziam) parte dos 13 mil doentes com hepatite C identificados em Portugal. Mas as estimativas apontam para que possam existir pelo menos 50 mil pessoas com a doença, já que é possível permanecer assintomática durante largos anos. Há mesmo quem fale em mais de 100 mil doentes. Tanto os especialistas como as plataformas de doentes, como a SOS Hepatites, têm defendido a realização de um rastreio nacional para todos os que nasceram entre 1950 e 1980.

Entre 1961 e 1974, Portugal teve quase um milhão de pessoas que foram para África, durante o período da Guerra Colonial, e por isso terão corrido um maior risco de exposição ao vírus devido a ferimentos e à falta de condições de tratamento. Foi também altura no país muito marcada pela partilha de seringas. Por isso, a SOS Hepatites, no Dia Mundial das Hepatites, que se assinala no dia 28 de Julho, terça-feira, vai fazer alguns rastreios na Praia de Santo Amaro de Oeiras e sensibilizar a população com a ajuda de figuras públicas com o slogan “Faça o Rastreio. Salve o seu Fígado”.

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