Antigo comandante da Protecção Civil condenado por desvio de fundos
Gil Martinsl foi condenado por peculato mas vai recorrer. Juízes decidiram que terá de devolver 102 mil euros ao Estado
Entre marisqueiras e restaurantes típicos, enquanto esteve em funções o comandante fez refeições um pouco por todo o lado. Se em Lisboa não lhe escapou o Solar dos Presuntos, em Sintra foi o Palácio dos Leitões. Eram refeições de trabalho, argumentou. Só que os juízes do Campus de Justiça de Lisboa que o sentenciaram a quatro anos e meio de pena suspensa não conseguiram perceber lá muito bem como conseguiu gastar 684 euros de uma assentada em comes e bebes, numa só refeição. Em Espinho, no Aquário Marisqueira, foram mais 348 euros. Nas almoçaradas e jantaradas não participavam habitualmente mais de quatro ou cinco pessoas de cada vez, não fosse o elevado número de comensais perturbar os trabalhos. O total da factura, da qual Gil Martins terá agora que reembolsar o Estado, ascende aos 102 mil euros, e inclui ainda equipamentos informáticos, de vídeo e de audio comprados também pelo antigo comandante com dinheiros destinados ao combate aos incêndios mas encontrados na casa onde vivia com a mulher. Tudo pago com dinheiro, e nunca com cartões ou outros meios de pagamento.
O esquema, tal como foi delineado pelo Ministério Público na sua acusação e comprovado pelos juízes, incluía a transferência de mais dinheiro do que o necessário para os Bombeiros Voluntários de Barcarena, a título de pagamento ao pessoal destacado para o dispositivo de combate aos incêndios. Como as verbas acabavam por nunca serem gastas na totalidade, com o que sobrava Gil Martins almoçava, jantava – num só dia fez seis refeições –, quando calhava dormia fora de casa e comprava equipamentos tecnológicos. Dizia que a Protecção Civil precisava de prever eventuais catástrofes. Daí que num só ano tenha tido sete computadores – um atribuído pela Protecção Civil e outros seis pagos com o dinheiro dos bombeiros de Barcarena. O numerário chegava-lhe através do seu motorista, a quem passavam cheques que este levantava, entregando-lhe o dinheiro vivo. Dado que gastava centenas de euros por dia em numerário, andaria com a carteira a transbordar de notas? A dúvida levantada pelo tribunal acabou por ficar sem resposta.
Tudo aconteceu ao longo de mais de dois anos, entre 2007 e 2009, altura em que António Costa e depois Rui Pereira lideravam a pasta da Administração Interna (ver caixa). As filhas do comandante também ganharam um iPod cor-de-rosa, que Gil Martins assegura que a Protecção Civil só pagou por engano. “O iPod foi comprado por mim. Deve ter entrado nas contas erradamente – até porque era rosa e ficava mal a alguém da Protecção Civil usar essa cor”, justificou-se durante o julgamento. Nas buscas à residência da agora ex-mulher, no Estoril, a Judiciária encontrou ainda uma máquina fotográfica de 1400 euros, um televisor LCD, uma câmara digital, um leitor de DVD e um telemóvel de 800 euros, que estava a ser usado pela dona da casa.
O arguido nunca se mostrou arrependido. Se tudo se passou assim foi porque já antes da sua entrada para a Protecção Civil assim se passava, sem controlo: “O meu tecto de despesa eram 80 milhões de euros. Com um estalar de dedos, sem ter de justificar nada a ninguém”. Uma argumentação a que os juízes franziram o nariz. Concluíram que Gil Martins se aproveitou da ausência de mecanismos de controlo de verbas no organismo que ajudava a dirigir, violando a confiança que nele tinham depositado quer a instituição quer os governantes que o escolheram para o cargo.
O juiz que leu o acórdão, Pedro Lucas, sublinhou a repulsa social que despertam os crimes contra o erário público, que "atentam contra os sentimentos de confiança nas instituições". E classificou como grave a violação, por parte do antigo comandante, dos seus deveres de zelo e lealdade como profissional equiparado a funcionário público. “Durante mais de dois anos, o arguido fez as suas refeições à conta destas verbas”, observou.
Apesar de tudo, o mérito profissional que sempre lhe foi reconhecido no desempenho de funções ligadas ao combate a incêndios e o facto de não ter cadastro funcionaram como atenuantes para não ser obrigado a cumprir prisão efectiva. Gil Martins estava ainda acusado de falsificação de documentos, crime que os juízes da comarca de Lisboa que analisaram o caso consideraram não lhe ser, afinal, imputável. Como pena acessória, ficou ainda proibido de exercer o cargo de comandante da Protecção Civil por quatro anos.
À saída do Campus de Justiça, a sua advogada, Ana Cristina Domingues, anunciou que irá recorrer da sentença. "A justiça falhou", declarou. Já o antigo comandante, que desde 2011 pertence ao Instituto Superior de Educação e Ciências, em Lisboa, onde dirige um observatório de Protecção Civil e Safety, escusou-se a prestar declarações.
Contratado por empresa municipal da Câmara de Lisboa
Depois de ter afastado do cargo de comandante operacional da Protecção Civil por causa das suspeitas de desvio de verbas, Gil Martins foi contratado por uma empresa municipal da Câmara de Lisboa, estava António Costa à frente do município.
Foi em 2012 que a Gebalis contratou, por ajuste directo, o comandante para fazer um levantamento das vulnerabilidades dos bairros sociais a nível de incêndios a troco de dois mil euros mensais durante um ano, período prorrogável por mais 24 meses. Defendida por António Costa, a consultoria gerou, porém, polémica na câmara, quer por o Regimento de Sapadores Bombeiros poder ter sido encarregue de fazer aquele serviço, sem encargos extra para o município, quer pelas graves suspeitas que impendiam sobre Gil Martins, que já nessa altura tinha sido constituído arguido pelo crime de peculato. Embora contra a sua vontade, mas pressionado pela então vereadora Helena Roseta, que tinha o pelouro da empresa municipal Gebalis, o hoje candidato a primeiro-ministro acabou por ser obrigado a aceitar a rescisão do contrato com o comandante pouco tempo depois da sua contratação.
Na qualidade de arguido, Gil Martins esteve impedido de exercer funções em entidades que utilizassem verbas transferidas pela Autoridade Nacional de Protecção Civil e que implicassem a gestão de dinheiros, uma medida de coacção que contestou nos tribunais, mas sem sucesso.