Esta Europa acaba mal (vêm aí os canibais de Paolo Magelli)

Se a Europa se aproximasse do espelho veria uma peça de Horváth: este Hotel da Bela Vista em que ele a faz ser devorada em vida, cem anos antes do default.

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A Europa, a Europa, a Europa.

Também acontece com a Europa, aquele efeito estranho: anos e anos a repetir a palavra como um mantra, dentro e fora do contexto (o default, o default, o default), e eis que ela perde definitivamente o sentido, ao ponto não haver programa de assistência financeira (ou linguística, ou neurológica, ou psicanalítica) que possa salvá-la.

Como nas notícias sobre a Grécia, ou sobre os refugiados que todos os dias desembarcam na Sicília (isto, claro, quando não morrem a tentar), a Europa, a Europa, a Europa é a palavra mais infinitamente repetida neste Hotel da Bela Vista que o Festival de Almada recebe na próxima quarta-feira, dia 8, no Palco Grande da Escola Secundária António da Costa. Não é exactamente a Europa de Ödön von Horváth, o dramaturgo que escreveu a peça aos 22 anos, quando já tinha no lombo uma guerra mundial, o fim de um império e o princípio de uma bela amizade alemã que viria a acabar muito mal – a Europa ainda intacta que ia de Fiume (actual Rijeka), a cidade então austro-húngara e hoje croata onde o dramaturgo nasceu em 1901, até aos Champs-Elysées, onde morreu estupidamente, debaixo de uma árvore, acabado de sair do cinema (tinha ido ver a Branca-de-Neve) e a caminho de um contrato com Hollywood, como tantos outros renegados da Alemanha nazi (se Sarkozy já fosse nascido, talvez lhe tivesse chamado escumalha). Passaram quase 100 anos, e além da Primeira Guerra Mundial que Horváth atravessou sem nunca verdadeiramente sair dela (“Tenho de fazer um esforço considerável para encontrar lembranças dos tempos de paz, e creio que deve passar-se o mesmo (…) com todos aqueles que têm [esta] idade”, disse numa entrevista radiofónica em 1932), houve uma segunda. E também houve um Holocausto, uma Cortina de Ferro, uma carnificina balcânica, demasiados atentados, uma crise sistémica, e tudo isso neste que de todos os continentes mais se parece com o paraíso, um paraíso agora irremediavelmente perdido (o default, o default, o default).

É justamente nesse paraíso perdido – não a muitos quilómetros do inferno da Grécia em ruínas e sem Multibanco das últimas semanas, não a muitos quilómetros do inferno de Lampedusa onde só de Janeiro a Maio deste ano desembarcaram mais de 50 mil migrantes – que encontramos Paolo Magelli, 68 anos, o encenador que quando se aproxima do espelho vê o fantasma de Horváth. É o seu dramaturgo maldito favorito, sim, mas há entre os dois uma química que é tão maior do que isso: por exemplo, a mesma vocação para o exílio (Horváth fez a escola primária em Belgrado, o liceu em Budapeste, a universidade em Berlim, e depois tentou salvar-se da Alemanha nazi, que lhe queimou os livros e lhe proibiu as peças, em Viena, Praga, Zurique, Amesterdão e Paris; Magelli nasceu perto de Florença mas estudou línguas eslavas e passou anos na antiga Jugoslávia, que se desagregou à frente dele, e depois na Alemanha, apenas para falarmos dos lugares onde permaneceu mais tempo), e o mesmo destino mítico, a Mitteleuropa. “Sou um ser estranho, um florentino que escolheu o Leste”, avisa-nos quando nos sentamos numa esplanada siciliana em Siracusa, onde acaba de encenar uma Medeia nas impressionantes ruínas do teatro onde Ésquilo estreou uma das suas grandes tragédias, Os Persas (e também é isto a Europa: um teatro grego, um encenador italiano, um jornal português, e a 90 quilómetros o caos na Líbia: resumindo, entendemo-nos no francês de Sarkozy). Gosta dos clássicos, mas não como de Horváth, de quem só ainda não encenou duas peças. “Ele teve uma vida… Problemas com as mulheres, com a política, com a família – eu reencontro-me na vida dele. Vou usar uma banalidade que de certeza já ouviu muitas vezes: reencontro-me nele como num espelho. E não é um espelho partido.”

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Têm os dois exactamente a mesma altura: um metro e 88.

O fim
Paolo Magelli apaixonou-se por Horváth noutra vida, quando leu Juventude sem Deus. “Tinha 25, 26 anos, foi uma paixão geracional. Na altura fiquei impressionado com a modernidade daquilo, e como o que mais queria era fazer um teatro expressionista o Horváth era perfeito. Lembro-me perfeitamente do meu primeiro Hotel da Bela Vista, que fiz na Croácia, em 1978: os actores estavam todos maquilhados…”. Imaginamos o cenário: “Tive demasiados adereços na minha vida, demasiados meios. A minha memória está cheia de tralha – por isso é que o meu teatro hoje é muito vazio. Sabe, a experiência alemã [trabalhou em Wuppertal com Pina Bausch entre 1989 e 1995; esteve no Staatschauspiel de Dresden entre 2003 e 2009] mudou-me muito.”

Dá para perceber mal se entra neste Hotel da Bela Vista que encenou para o Teatro Metastasio Stabille della Toscana – o teatro em que se iniciou, no mesmo grupo de Roberto Benigni, na década de 60, e a que voltou, já como director, em 2010. Um alçapão, uma mesa, cinco ou seis cadeiras (portanto: o vazio moral). E um mapa da Europa que há-de ter um triste fim, porque os hóspedes deste hotel decadente são na verdade canibais e o champanhe cai mal em estômagos vazios: não havendo nada para comer (nem uma batata, nem um pepino, nem um resto de carne assada), há um território para despedaçar e devorar em vida, até ao último país, até ao último europeu.

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Um hotel em que os funcionários se agarram a toda e qualquer saia que mexa, em que não há hóspedes que não tenham pesadelos, em que o telefone está avariado há semanas...

Ah, a Europa, a Europa, a Europa. Um hotel (algures na Baviera, onde 20 anos depois de Hórvath escrever esta peça Hitler também teve o seu paraíso perdido) em que os funcionários se agarram a toda e qualquer saia que mexa, desde que tenha uma carteira, de preferência com dinheiro; um hotel em que não há hóspedes que não tenham pesadelos; um hotel em que o telefone está avariado há semanas, as poucas toalhas de mesa que sobraram estão sujas, e os lençóis ficaram em farrapos, das noites sem dormir; um hotel em que alguém aparece para cobrar “aquelas seis caixas de champanhe entregues a 17 de Fevereiro do ano passado”. Bom, o hotel das notícias sobre a Grécia – para não nos esticarmos muito.

Não era exactamente nisso que Paolo Magelli estava a pensar há dois anos, quando resolveu encenar Hotel da Bela Vista pela segunda vez, depois da experiência croata de 1978, que lhe deu o Prémio Roma. “Não tenho muito o hábito de voltar aos textos. Voltei muito ao Tchékhov – fiz A Gaivota três vezes, em três línguas diferentes; fiz O Cerejal em Zagreb, em Wuppertal e no Metastasio – e voltei bastante ao Horváth. Com Histórias do Bosque de Viena, em Belgrado e em Caracas – foi a primeira vez que o Horváth foi representado em espanhol, porque o Franco interditou-o e na América Latina era desconhecido –, e com esta peça, que quis montar no meu teatro em Prato porque inacreditavelmente nunca tinha sido representada em Itália, nem sequer estava traduzida. Traduzi-a directamente do alemão em três semanas para poder pô-la em cena”, explica ao Ípsilon (e o alemão de Horváth não é fácil de traduzir, acrescenta, porque é "o idioma inventado da Mitteleuropa", contaminado por todas as línguas desse rapaz que atravessou o Velho Continente).

Como director do Metastasio, Paolo Magelli achou que era preciso fazer Hotel da Bela Vista em 2013, como é preciso fazê-lo agora. “Os autores de teatro, quando querem verdadeiramente dialogar com o presente, têm uma intuição magnífica para a História. Vão sempre à frente. Para mim, este hotel é uma alegoria da Europa de hoje. Um hotel falido, dividido, em que os funcionários já não têm nada para fazer e toda a gente espera a lotaria – também é assim na Europa dos desempregados. Comenta-se muito que o Horváth previu a ascensão do nazismo, mas eu acho que previu mais do que isso: o fim da civilização europeia. É verdadeiramente o sol que se vai e deixa a Europa na noite eterna.”
 
Quem come quem
Seria uma noite terrível, se não tivéssemos o teatro – para Magelli, “o último espaço de liberdade colectiva” que ainda resta numa sociedade em que “tudo se tornou ligeiro, incluindo a filosofia, a tragédia e a coca-cola”. A cena terminal do mapa, de resto, saiu totalmente da cabeça dele, como outra em que um cerco se transforma em violação – comparado com o Hotel da Bela Vista do texto original, o Hotel da Bela Vista da peça que traz a Almada é incomparavelmente mais brutal, mais animal, mais canibal. Estamos mesmo a despedaçar a Europa, como nesse jantar em que aqueles que se tornaram excedentários a rasgam com os dentes porque já não há mais nada para comer (a não ser duas mulheres, e ambas vão ser cilindradas)? “É aonde eu sinto que chegámos. E por isso dei-me a liberdade de acrescentar uma frase ao texto, a frase que se diz nesta cena: ‘Senhores, esta foi a última tentativa de alta pastelaria deste hotel’. Acho que Horváth aprovaria a adenda.”

Ele, Magelli, aprova tudo o que está no texto original – mesmo a tralha da luta de classes, que cem anos e uma União Soviética depois podia parecer obsoleta ( “Crucifica-me! Mas não exijas que eu beba à mesma mesa com criados e chauffeurs”, implora às tantas o barão arruinado). “Para mim era importante como encenador marcar as classes – enfim, fiquei marxista e já não posso mudar, é demasiado tarde. E assim é mais fácil identificar a Europa dos nossos dias: quem é quem, quem come quem”, justifica. Pessoalmente, depois de cinco anos à frente do Metastasio, acha que está na altura de sair do topo da cadeia alimentar: “Não se pode criticar quem fica agarrado aos cargos e depois querer permanecer. Há lugares onde se deve ficar, onde se tem o dever de ficar, mas este não é um deles.” É mais uma história europeia: a história de como Magelli permaneceu em Zagreb durante a guerra (quando ela começou, estava a trabalhar noutro texto de Horváth, Fé, Esperança e Caridade, que por causa dos apagões nocturnos teve de fazer todas as suas representações durante o dia), pelo menos até ser expulso por Franjo Tudjman, e mesmo assim voltou clandestinamente, em 1995, para montar O Cerejal nos escombros do Teatro Gavella. Um dia quis regressar a casa, e foi uma asneira. “Acho que é sempre um erro regressar. Mas temos sempre vontade de errar.”

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Ah, a Itália, a Itália, a Itália. Seja como for, não é em Itália que pretende ficar (“É pior agora do que com Berlusconi: ele era um infeliz que falava muito e fazia pouco; este, com o alibi de ser de esquerda, faz coisas, e ainda por cima coisas terríveis, muitas das quais de direita”), e aliás a seguir à entrevista vai apanhar um avião para Dortmund. A partir de Dezembro começa a fazer espectáculos em Zagreb, Viena, Liubliana. “Regresso à Mitteleuropa. Vou para a casa de Horváth.”

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada

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