Governo avança com tomada de posse das terras sem dono conhecido

Terras abandonadas que não sejam alvo de reclamação por parte dos seus proprietários entram ao final de três meses na Bolsa de Terras e passam de vez para a esfera do Estado ao final de 18 anos.

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Assunção Cristas diz que a proposta é ainda um "texto aberto" Pedro Cunha

O Ministério da Agricultura e do Mar enviou para a Assembleia da República um projecto de lei que aponta para a transferência das propriedades agrícolas ou florestais sem dono conhecido para o domínio do Estado. A iniciativa do Governo é um desenvolvimento da lei que consagrou a Bolsa de Terras, em 2012, e tem como principal objectivo “dinamizar o uso da terra, em particular pelos jovens agricultores”.

Ninguém sabe ao certo a área de propriedades abandonadas e sem dono conhecido – as estimativas do Instituto Nacional de Estatística apontam para 100 mil hectares da superfície agrícola utilizada (SAU) nessas condições. A lei, diz a ministra da Agricultura, Assunção Cristas, vai servir como um “tira-teimas” sobre a dimensão do abandono de terras em Portugal.

Há décadas que em Portugal se discute o que fazer com amplas áreas do território que estão ao abandono, principalmente terras florestais de regiões sujeitas a fortes processos de desertificação. Os agrónomos, os ambientalistas e os silvicultores têm apontado com frequência os custos desse abandono ao nível da propagação de pragas ou da dimensão dos incêndios. A possibilidade de, como acontece em outros países europeus, o Estado tomar posse desses terrenos, proceder a “práticas silvícolas mínimas”, cortar e vender madeira para ressarcir os encargos com a limpeza são discutidos com regularidade.

Nenhum governo foi capaz de arriscar essa iniciativa e Assunção Cristas e a sua equipa demoraram dois anos a conseguir um projecto de lei que está longe de ser tão intrusivo na esfera da propriedade privada. De resto, acredita a ministra, já hoje existe a possibilidade de privados, de gestores das zonas de intervenção florestal (ZIF) ou das próprias autarquias poderem proceder a limpeza de matas ou de terrenos abandonados por terceiros, particularmente em casos em que a segurança da propriedade esteja ameaçada pelo fogo.

Com base nestes pressupostos, a proposta do Governo “é cautelosa e garantística”, diz Assunção Cristas. Na melhor das hipóteses, uma terra abandonada e sem dono conhecido será sujeita a várias diligências processuais para permitir que seja reclamada e só ao fim de 18 anos é que a sua matriz poderá ser registada em nome do Estado – o que não quer dizer que entre rapidamente na Bolsa de Terras e possa ser arrendada ao final de alguns meses após a sua identificação. “Só podemos dizer que defendemos a propriedade quando a valorizamos”, diz Assunção Cristas, o que, como tese, significa que quem deixa as suas terras ao abandono corre o risco de as ver intervencionadas pelo Estado e ser obrigado a ter de disputar administrativamente a sua posse.

O processo começa com a identificação de terras sem dono conhecido, uma tarefa à escala nacional que envolve departamentos regionais do Ministério da Agricultura, câmaras municipais, juntas de freguesia e uma rede de gestores operacionais (GeOp) da Bolsa de Terras, como associações de agricultores dispersas pelo país.

Depois de identificada uma terra nas condições previstas pela lei, faz-se a publicidade sobre a intervenção nessas terras e concede-se 90 dias aos seus proprietários para reclamarem a sua titularidade – a publicitação faz-se à escala local, em sede nacional e envolve os consulados portugueses no estrangeiro.

Após estes 90 dias, as terras entram na Bolsa de Terras e podem ser arrendadas por um prazo de um ano até ao limite máximo de três anos. No final deste prazo, procede-se a uma nova ronda de publicitação à procura de titulares dos terrenos que provem documentalmente o seu direito de posse. Finda esta fase, e na eventualidade de permanecerem sem dono, as propriedades são inscritas no Sistema de Informação de Bolsa de Terras, condição suficiente para que a sua matriz seja registada em favor do Estado. Mas só no final de um período de 18 anos é que o Estado assume a plena posse – neste período o Estado não as poderá vender ou onerar definitivamente. Se por acaso os legítimos donos aparecerem e comprovarem a propriedade do terreno, têm direito a “receber o montante correspondente às renda e ou a outros proveitos entretanto recebidos pelo Estado, deduzido o valor das despesas e ou benfeitorias necessárias realizadas no prédio”.

Para o Governo, o efeito que esta legislação poderá ter na capacidade de oferta da Bolsa de Terras é desconhecida. Na situação actual, e após dois anos em vigor, a bolsa cedeu 2865 hectares e dispõe ainda de quase 12 mil hectares para distribuir. A maioria destes terrenos (7892 hectares) tem aptidão exclusivamente florestal. A incógnita que este processo suscita desde o início junto de agrónomos ou de instituições como a CAP relaciona-se com a qualidade das terras que estão ao abandono – um ponto de vista que se alicerça na constatação de que as terras com aptidão estão florestadas ou agricultadas.

A ministra da Agricultura relativiza estas dúvidas: “O que hoje não dá para a agricultura pode vir a dar amanhã.”

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