Going Clear ou como a Cientologia controla John Travolta e Tom Cruise

Depois de ter sido exibido no Festival de Cinema de Sundance, o documentário Going Clear: Scientology and the Prison of Belief estreou-se na HBO. A organização diz que o filme está construído com base em falsidades.

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Going Clear

A HBO contratou 160 advogados quando o canal de cabo por subscrição norte-americano decidiu transmitir Going Clear: Scientology and the Prison of Belief, o documentário de duas horas baseado no livro Going Clear: Scientology, Hollywood, and the Prison of Belief de Lawrence Wright, jornalista do staff da revista The New Yorker e vencedor de um Prémio Pulitzer com o livro A Torre do Desassossego – O percurso da Al-Qaeda até ao 11 de Setembro (Casa das Letras). Isso faz sentido quando vemos o filme, realizado por Alex Gibney (realizador do documentário Roubamos Segredos: A História da WikiLeaks) e que foi exibido pelo canal norte-americano no passado dia 29 de Março.

Em Going Clear: Scientology and the Prison of Belief ex-membros e responsáveis da Igreja da Cientologia revelam segredos da organização e contam histórias de terror de abusos físicos e psicológicos durante as suas experiências com a controversa religião – e depois de terem fugido dela. (A Igreja lançou uma série de anúncios de ataque ao filme e diz que ele é “propaganda preconceituosa” e que está “construído sobre falsidades inventadas por mentirosos confessos”.)

Um dos temas particularmente fascinantes com que o documentário lida é a relação entre celebridades e a Igreja, que tem sido bem documentada, especialmente com dois dos seus mais famosos membros: John Travolta e Tom Cruise. O filme pormenoriza quão dependente desse star power está o líder da Cientologia, David Miscavige, para recrutar novos membros e para angariar dinheiro.

A Igreja da Cientologia – que vale milhares de milhões de dólares – é considerada isenta de impostos pelas Finanças norte-americanas, que durante anos se envolveram numa luta feia com ela até desistirem e a declararem uma organização sem fins lucrativos em 1993. Como diz Lawrence Wright em Going Clear, só há duas maneiras de parar esta Igreja. Uma: as Finanças podem mudar de ideias e começar a olhar para as suas contas. A outra? “Algumas destas celebridades-porta-vozes podem voltar-se contra a Igreja da Cientologia”, diz Wright. “E Tom Cruise devia estar na liderança dessas vozes.”

Contudo, torna-se claro que Cruise não estará prestes a fazer isso; nem Travolta, outro membro influente. De acordo com o filme, a organização vem controlando as duas estrelas de Hollywood há anos. (O filme indica que Travolta e Cruise estavam na lista de pessoas contactadas para o filme que ou declinaram ou não responderam aos pedidos de entrevista.)

“O meu conceito preferido da Cientologia é provavelmente o de um mundo sem criminalidade, um mundo sem guerra e um mundo sem loucura”, diz, no filme, um jovem Travolta aparecendo em imagens de uma entrevista antiga. “E não conheço qualquer outro grupo cujos objectivos sejam tão claros.” No entanto, Travolta não acrescenta que a Igreja, fundada pelo falecido escritor de ficção científica L. Ron Hubbard, também acredita que um suserano intergaláctico de seu nome Xenu outrora expulsou os humanos de um outro planeta para a Terra e que os seus espíritos desincorporados vivem em todos nós. Em vez disso, Travolta centra-se no lado de preenchimento espiritual da religião (conhecido também pela expressão "going clear" ou “esclarecimento”) que é o objectivo maior desta Igreja. 

Travolta envolveu-se com a Cientologia quando L. Ron Hubbard aumentou os seus esforços de proselitismo nos anos 1970, em Los Angeles, diz Lawrence Wright, e várias celebridades como Rock Hudson ou Priscilla Presley se mostraram interessadas nesta Igreja. Fazia sentido: como a jornalista Kim Masters refere durante o documentário, Hollywood é um sítio difícil para a auto-estima seja de quem for, especialmente a dos aspirantes a actores. Quando estão à procura de uma oportunidade para entrar na máquina de Hollywood e “a lidar com a rejeição implacável”, a Cientologia parece ser um lugar acolhedor de auto-ajuda. “Pode ver-se o apelo disso”, afirma Kim Masters no filme.

O filme assevera que Travolta era “um jovem perturbado à procura de ajuda” quando tropeçou no livro de L. Ron Hubbard, Dianética – O Poder da Mente sobre o Corpo (New Era PT). Depois de ter descoberto a Cientologia, começou a conseguir tudo na sua carreira: anúncios, pequenos papéis, o seu papel na série televisiva Welcome Back Kotter.

Conta-se no documentário que a um membro da Cientologia de nome Spanky Taylor foi atribuída a função de ser o seu contacto e tornaram-se próximos. Taylor é profusamente entrevistada em Going Clear e lembra-se do enorme incremento de confiança que Travolta recolheu da Igreja – e de como ele tinha medo que, se deixasse de ir à Cientologia, o seu sucesso também se desvaneceria. Travolta foi a primeira superestrela porta-voz da Igreja. “As crenças e práticas que estudei na Cientologia têm sido inestimáveis para mim”, diz Travolta numa entrevista antiga. 

Mas as coisas tiveram um revés obscuro quando Spanky Taylor foi enviada para a Rehabilitation Project Force, conta ela no filme, um “campo prisional” para membros que criticavam a Igreja. (É apresentando como um lugar onde os membros podem ir quando estão “stressados”.) Taylor diz que foi forçada a fazer trabalho servil e a dormir poucas horas por noite, e que também foi separada da sua filha bebé, porque as crianças são vistas na comunidade como uma “distracção” para os seus pais. Explica como conseguiu fugir com a sua filha depois de ter estado a viver em condições horripilantes.

Contudo, foi também impedida de falar com o seu amigo John Travolta; o jornalista Lawrence Wright alega que Travolta sabia o que estava a acontecer a  Spanky Taylor, mas nada fez. “Certamente que ele sabia que nem tudo estava bem”, diz Taylor, questionando-se em voz alta por que é que isso não bastou para que Travolta deixasse a Igreja. “Questiono-me muitas vezes sobre o que é que poderá mantê-lo lá.”

A resposta possível: antigos responsáveis da Cientologia, entre os quais o antigo porta-voz Marty Rathbun, dizem que cada “auditoria” (quando um cientologista é forçado a revelar os seus segredos mais íntimos e obscuros como forma de atingir a clareza espiritual e mental) é gravada e filmada. Já para não falar das páginas e páginas de notas que os “auditores” tiram nessas sessões. Portanto, quando se soube que Travolta ameaçava sair, tudo o que os responsáveis tinham de fazer era passar em revista todas as notas de sessões de auditoria para encontrar segredos que John Travolta tinha contado e que poderia não querer que se tornassem públicos.

“Sei isto, porque costumava fazê-lo quando era o responsável do gabinete de assuntos especiais”, diz o antigo responsável Mike Rinder. “Ao expor [esses segredos] ou ao ameaçar expô-los, eles intimidam a pessoa e forçam-na ao silêncio.” Travolta ficou na Igreja, diz Rathbun, porque tinha o total apoio da poderosa organização que o ajudaria a “esmagar ou intimidar” quaisquer histórias acusatórias que ele não quisesse ver nos media – como os rumores de que era secretamente gay, o que chegou às capas dos jornais tablóides norte-americanos. Marty Rathbun afirma que ele e Mike Rinder ajudavam os relações públicas de Travolta e os seus advogados a combater essas histórias. “Quando isso aconteceu, acho que ele se tornou mesmo um prisioneiro da Igreja”, acrescenta Lawrence Wright.

Tom Cruise e o líder da Cientologia David Miscavige, que ascendeu ao cargo após a morte de L. Ron Hubbard, eram segundo se mostra no documentário amigos próximos. Mas a relação de ambos embateu num obstáculo quando Tom Cruise se apaixonou por Nicole Kidman e os dois se casaram. Isto porque o pai de Kidman era psicólogo (e a Igreja não gosta de psicólogos), e ela foi identificada como uma “PFP”: uma potencial fonte de problemas. Os dois actores estiveram casados durante pouco mais de dez anos e, depois de David Miscavige ter concluído que Tom Cruise lhe estava a escapar, Marty Rathbun confessa que foi encarregue da tarefa de separar o casal e de devolver Tom Cruise à sua Igreja.

Como fez isso? Com a ajuda das "auditorias". Rathbun diz que não só teve de entregar os relatórios das suas sessões de "auditoria" com Tom Cruise, como Miscavige contratou detectives privados para procurar informações prejudiciais quanto à vida da actriz Nicole Kidman. Também lhe puseram o telefone sob escuta quando Tom Cruise declarou que estava curioso quanto às suas conversas telefónicas (no entanto, o advogado de Cruise nega tal acusação). O filme também alega que David Miscavige ajudou a criar problemas entre Nicole Kidman e os seus filhos adoptivos com Tom Cruise, voltando-os contra a mãe.

Quando Tom Cruise se divorciou de Nicole Kidman em 2001, David Miscavige propalou a ideia de que ele era o embaixador da Cientologia no mundo e deu-lhe prémios, fazendo-o sentir-se como uma superestrela. (Se não viu o vídeo de Cruise a aceitar a sua Medalha de Bravura da organização, vale a pena.) A jornalista Kim Masters defende no documentário que a Igreja da Cientologia deu dezenas de presentes caros ao actor, ao passo que Cruise ignora o facto de que algumas pessoas da organização trabalham por uma ninharia. Going Clear também justapõe as imagens de Cruise a celebrar o seu 42.º aniversário num iate e as imagens de alguns membros da Cientologia a descrever traumas psicológicos.

Além destas, há outras histórias estranhas: depois de David Miscavige ter sabido que Tom Cruise se queixava de que precisava de uma nova namorada, a jovem cientologista Nazanin Boniadi (actualmente uma actriz conhecida pelo seu papel em Foi Assim Que Aconteceu e Segurança Nacional) repentinamente tinha uma nova tarefa. A actriz Nazanin Boniadi assinou um acordo com a Igreja em que se compromete a nada revelar, mas o realizador de Going Clear, Alex Gibney, diz ter encontrado alguns detalhes sobre o que se passou em testemunhos recolhidos pelo FBI. O filme relata que mudaram Nazanin Boniadi para o centro de celebridades da Igreja, onde esta recebeu e ouviu uma gravação do seu namorado em que ele confessava ter tido um caso.

Depois de ter terminado a relação com o então namorado, a actriz foi objecto de uma transformação para melhorar o seu aspecto físico – o que a organização lhe disse ter por fim uma missão humanitária na qual a actriz iria participar e por isso tinha de estar no seu melhor perante os líderes mundiais.  

Mas, em vez disso, foi-lhe atribuído o papel de nova namorada de Tom Cruise. Alex Gibney conta que pouco depois de Nazanin Boniadi se ter mudado para casa de Tom Cruise, receberam uma visita de David Miscavige. Nazanin Boniadi estava com dores de cabeça e não muito capaz de conversar e, mais tarde, Tom Cruise gritou com ela por não ter mostrado mais respeito pelo líder da Cientologia. Pouco depois dir-lhe-iam que já não era a namorada de Tom Cruise e foi reenviada para um outro centro da Cientologia.

O antigo membro da Cientologia Paul Haggis, realizador de Colisão, também é entrevistado no documentário e conta que Nazanin Boniadi foi castigada (obrigada a limpar as casas de banho públicas do edifício com uma escova de dentes) por ter contado a um amigo sobre a tristeza que sentiu pela separação do actor.

E qual é a versão oficial dos líderes da Cientologia na reacção a estas histórias? “A Igreja defende que David Miscavige não tem qualquer envolvimento na vida pessoal de Tom Cruise e que a busca de uma namorada para Cruise nunca existiu”, afirma o realizador Alex Gibney.


 
PÚBLICO/The Washington Post

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