Escalar a adolescência
João Salaviza acaba de escalar a adolescência num estúdio de Paris: fechou Montanha, a sua primeira longa-metragem.
“Quando comecei a escrever o argumento, em 2009, logo a seguir a Arena [a curta-metragem de João Salaviza que recebeu Palma de Ouro em Cannes], quis, inicialmente, ter o Portugal da crise, do desemprego, da falta de esperança...”, conta o realizador. “Com a rodagem, fui reescrevendo, e percebi que o ponto do filme é não existir país ou mundo para além das coisas quotidianas. Não há país no sentido sociológico."
Não se vêem telemóveis ou computadores em Montanha, primeira longa-metragem do realizador que vai estrear este ano. “Parece um filme antigo”. Parece. Soa. Ouve-se como...
Há uma sequência, a que estão a ser dados toques finais – mistura de som, num estúdio de Paris –, em que três corpos adolescentes num sofá, dois rapazes (um reconhecemos, é o Rodrigo Perdigão de Rafa; o outro é o protagonista, David Mourato, que vem directamente do Infantado para o cinema português) e uma rapariga, a Paulinha (Cheyenne Rodrigues), flutuam numa espécie de absoluto. Vêem um filme na televisão, divertem-se, aborrecem-se, ficam com sono. Eis um trio num cume de languidez.
Inútil indagar, procurar a referência daquilo que os três estão a ver: o som que se ouve é de um filme que não existe, João Salaviza fabricou-o com as imagens de um programa antigo de TV e música de Lopes Graça. Soa a antigo, como num filme dos anos 50. É uma hipótese de banda sonora para Montanha, coisa que o realizador diz continuar a não ser capaz de fazer: música para (os seus) filmes.
“Acho que não há espaço, há o risco de isso poder ser sempre interpretado como um determinado discurso do realizador sobre uma determinada cena.” O máximo que acontece é a música sair do interior da sequência, dos quartos, das casas, e as personagens encontrarem-na nas suas deambulações – mas haverá uma primeira vez para uma canção de Norberto Lobo no genérico final.
Voltando a esse momento a três: mesmo se não se anda à procura de referências, há um eco que se ouve, um fulgor que se acende, quando Salaviza reconhece que andou a ver Fúria de Viver (1955), de Nicholas Ray. A personagem interpretada por David Mourato “não é inspirada no James Dean, mas há semelhanças físicas, é um tipo bonito a quem corre tudo mal, um tipo que, mais do que interagir com o mundo, deambula por ele, pelos seus tempos e lugares”. É um tipo – basta confirmar nas anteriores curtas do realizador – roído por uma angústia que está para além de questões e problemas concretos. “Uma coisa de que me apercebi na montagem é que ele está sempre a perder coisas. Há imensas cenas em que ele acaba sozinho...”, nota o realizador.
A história da intimidade
Este filme a três não era o que estava escrito no argumento, esse que “sobreviveu mais ou menos uma semana” de rodagem. “Há sempre improvização nos meus filmes, há sempre realidade, mas foi ao fim de uma semana de rodagem que encontrei essa relação entre as três personagens: os três actores”, David, Cheyenne, Rodrigo, “tinham saído à noite, havia uma energia grande, senti que devia estar mas é a sair com eles e a beber copos.” A rodagem foi interrompida, para reequacionar tudo.
Salaviza assume que as suas ficções são alibis para seguir os seus protagonistas – para estar perto de David, por exemplo, para o cheirar, estar perto do narcisismo desse corpo (David dizia na rodagem que estar ali como actor não lhe servia de nada, não era nada de especial, tudo lhe era facílimo de fazer; João nota: “Era como filmar um cão: ele está sempre a existir e não se transforma para o filme”.)
Mas porque é necessário erigir um pilar que sustente o edifício, o realizador construiu a história de um rapaz que vive com o avô, e cuja morte é iminente, e do seu reencontro com a mãe (Maria João Pinto). Um e outro não vivem juntos (Carloto Cotta, depois de Arena, regressa numa cena como ex-marido da mãe do míúdo).
“Está-me a parecer mais claro porque é que os filme servem: a história da intimidade. Ninguém sabe como um casal antes se beijava. Isso desapareceu. A história oficial não deixou espaço para que a intimidade sobrevivesse. A pintura, a literatura, o cinema permitem-nos perceber como é que era essa história, como é que eram os gestos mais simples, pousar um copo no chão ou fazer xixi: pequenos gestos que são a expressão de uma coisa enorme. Cada vez mais o que me interessa é filmar a intimidade. Tudo o que acontece dentro de casa”, diz o realizador.
“O meu gosto de filmar com não actores tem a ver precisamente com isso: o cinema pode ser um dos momentos em que se consegue que alguém seja ele próprio. Filmar – senti isso aqui e no Rafa [Urso de Ouro da curta-metragem em Berlim 2012] – é uma relação muito próxima com a verdade, a intimidade, com a possibilidade de chegar a esse lugar. Os grandes actores foram sempre eles próprios: o [Marlon] Brando, o [John] Wayne, a Isabel Ruth. São grandes porque são eles próprios. Há uma construção de ficção, mas há também vestígios das pessoas. O filme faz-se para chegar a esses pequenos momentos. A ficção permite-me reconstruir um espaço para as coisas emergirem. Só consegui chegar a esses espaços com o David porque entre nós existia um compromisso que era fazer um filme”.
Os últimos adolescentes
Porquê o título, Montanha? Montanha é isso: escalar a adolescência - Salaviza diz que ainda não se consegue desembaraçar do tema, não vai ficar por aqui. O filme passa-se muito nas alturas, no oitavo andar de um edifício, no bairro dos Olivais, em Lisboa. “É a suspensão do tempo e do espaço. As cenas de interiores parecem-me sempre ser coisas em suspensão, como o lado sensorial da adolescência” – e nos seus filmes há sempre a passagem do interior para o exterior, como um teste final, uma possibilidade abertura que se pode revelar, afinal, um horizonte de fechamento. “O título, tal como a música, não é vinculativo. Não se impõe.”
Montanha era para se passar no Bairro de Alvalade, em Lisboa, onde Salaviza cresceu, onde terá experimentado os últimos momentos de vida de bairro numa cidade - digamos que o seu cinema procura vestígios de um mundo, de uma intimidade, de uma fisicalidade, desaparecidos, alimenta-se da nostalgia de um miúdo de bairro, e quando se sabe que foi ali que o Cinema Novo floresceu, quando Lisboa se estendia, não surpreende que Verdes Anos e Mudar de Vida, de Paulo Rocha (1963 e 1966), como Belarmino e Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes (1964 e 1971), sejam títulos míticos para o realizador de 29 anos.
Não é Alvalade que fica gravado na memória de Montanha, é a arquitectura dos Olivais, que para Salaviza foi a construção de um receptáculo onde se transcendiam as classes e as suas diferenças – fala de uma sequência do filme em que coloca os seus protagonistas no que sobra hoje daquilo que para uma geração foi uma espécie de Monument Valley da utopia da vida de bairro: as piscinas dos Olivais. Como se ali, naquele bairro, tivessem vivido os últimos adolescentes que experimentaram isso de andar sem telemóvel ou isso de atravessar a rua para ir tocar à campaínha do prédio de um amigo ou isso de fazer uma declaração de amor. O cinema de Salaviza situa-se, então, num plano de memória e faz-se de um “encontro tácito” entre aquilo que foi a sua adolescência e aquilo que é a adolescência dos corpos com quem trabalha.
“Filmámos uma cena de declaração de amor. Como se fazia nos anos 50. O David dizia-me: ‘Mas hoje mandaria primeiro uma mensagem de telemóvel a ver se havia abertura da parte dela’. Filmar um ecrã de iPhone? É desinteressante. Se calhar ainda há uma incapacidade do cinema em lidar com a tecnologia, com esse lado virtual. Respondi-lhe logo: não ia filmar telemóveis.”